Vila Velha
A porta de ferro se fechou atrás de nós com um estalo seco e inconfundível. Foi ali, numa sexta-feira ensolarada e quente de outubro, que começamos a entender o que nos aguardava. A visita dos alunos do 27º Curso de Residência em Jornalismo ao Complexo Prisional de Xuri, em Vila Velha, era uma oportunidade ímpar para conhecer o sistema prisional capixaba para além dos números e das manchetes, mergulhando na rotina de uma unidade que o secretário de Justiça, Rafael Pacheco, chamou de “referência nacional” em segurança e ressocialização.
Ao cruzar os portões da Penitenciária Estadual de Vila Velha 3, onde estão mais de 1,1 mil homens, fui recebida por uma série de procedimentos de segurança. Fiquei um pouco espantada ao me deparar com o processo que até então nunca tinha visto. Bruno Nézio, meu colega e um dos 10 residentes, logo se voluntariou a passar pelo body scan, uma espécie de raio X que identifica artefatos de metal e substâncias ilícitas que porventura tentem ser levados para dentro do presídio por visitantes.
A jornalista Vilmara Fernandes, referência em assuntos que envolvem política e cidadania, foi a responsável por abrir a porta - simbolicamente - para que fôssemos parar atrás das grades. Colunista de A Gazeta e com mais de 25 anos de jornalismo no currículo, ela nos acompanhou pela visita com a presença certeira de quem já conhece a dinâmica desses lugares. Vilmara nos encorajou a observar com atenção e questionar sempre, porque em Xuri o que se vê e se ouve é o que revela a realidade.
Antes de cruzarmos os portões da penitenciária, o secretário da Justiça nos apresentou uma visão panorâmica do sistema capixaba. Hoje, o Espírito Santo administra 37 unidades prisionais e é responsável por quase 24 mil detentos, entre homens e mulheres. Segundo Rafael Pacheco, a última década foi marcada pela implementação de novas tecnologias, melhorias na gestão e investimentos em programas de ressocialização.
Num passado não tão remoto – mas que eu, como genuína gen Z (nasci em 2003), não vivenciei como jornalista –, os presídios capixabas eram sinônimo de crises sociais e estruturais. Denúncias de maus-tratos, superlotação e corrupção fazem parte da história do começo dos anos 2000. E, por mais que Xuri tente romper com essa narrativa, as marcas estão lá, silenciosas, mas presentes.
O secretário de Justiça fez questão de destacar para nós, residentes, o papel da ressocialização: são quase 6 mil presos empregados e mais de 7 mil inseridos em programas educacionais, desde a alfabetização até o ensino técnico. A ideia é simples e poderosa: transformar tempo de pena em oportunidade de crescimento.
Por isso, na PEVV3, conhecemos a Marcenaria Jequitibá, onde presos produzem móveis com mãos que um dia se perderam, mas hoje tentam reconstruir histórias. Também visitamos a fábrica de sapatos infantis, outro projeto que, além de gerar renda, oferece aos detentos um vislumbre do futuro fora das celas. E também uma rádio interna, tocada pelos próprios internos – um projeto que promete oferecer assuntos voltados a saúde e educação durante a programação.
Por outro lado, há uma realidade naturalmente devastadora. Ao caminhar pelos corredores da penitenciária, o cheiro das celas abafadas se misturava com uma sensação quase palpável dos reflexos de uma crise. A superlotação, embora combatida, ainda é uma realidade presente no Espírito Santo – a própria PEVV3 foi projetada para abrigar menos de 900 presidiários.
Em alguns momentos da visita à penitenciária, estivemos próximos de detentos que estavam se movimentando, sob vigilância da polícia penal. Por regra do próprio regime, eles não podem olhar visitantes, como nós, nos olhos. Andam de cabeça abaixada, um atrás do outro. Se estão parados, ficam virados para as paredes. Quando estávamos próximos da ala onde acontecem as visitas íntimas, ouvimos o que pareceu ser uma advertência a um dos detentos, que tentou olhar para nosso grupo: “Tá olhando pro lado por quê?”, disse um dos policiais penais, áspero.
Uma experiência como esta não muda somente a nossa percepção sobre o sistema prisional; altera nossa percepção sobre o próprio jornalismo. Falar sobre prisões exige mais do que reproduzir dados. É preciso compreender as histórias por trás das estatísticas e enfrentar uma realidade que, para muitos, é conveniente esquecer.
Cito uma fala do nosso coordenador do Curso de Residência, Eduardo Fachetti, durante o trajeto. Acho que ele estava certo ao dizer que essa imersão é essencial para quem quer viver da notícia. “Produzir conteúdo com o pé no acelerador”, como ele descreveu, exige também desacelerar e ouvir – mesmo que em meio ao silêncio pesado de uma prisão.
A informação é, em última instância, uma ponte entre quem está dentro e quem está fora, ajudando-nos a entender que, mesmo em meio ao encarceramento, existem histórias que precisam ser contadas.
Louize Lima é aluna do 27º Curso de Residência em Jornalismo. Este conteúdo teve orientação e edição do coordenador do projeto, Eduardo Fachetti
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