Desde 28 de junho de 1969, quando houve Rebelião de Stonewall, em Nova York, a luta pelos direitos da população LGBTQIA+ nunca mais parou. A sigla, que há algumas décadas era apenas GLS (Gyas, lésbicas e simpatizantes) foi ganhando novas letras ao decorrer do tempo. No mês do orgulho LGBTQIA+ celebramos o movimento de inclusão de pessoas de diversas orientações sexuais e identidades de gênero. Para mostrar que todas elas são igualmente importantes. Confira as histórias, lutas e superações de Evelyn, Filipe, André, Deborah, Rafael, Natália, Luiza e Cezar.
Evelyn Macedo, 40 anos, produtora de eventos que se identifica como lésbica
Ela cresceu numa família conservadora, criada por uma avó de origem italiana. Foi uma infância difícil em relação à sexualidade, lembra. A menina - que adorava brincar com carrinhos e soltar pipa - gostava de conviver com os meninos. As bonecas? Eram muitas e ficavam todas na estante. Aos 8 anos começou a se descobrir com uma amiguinha. Anos depois entendeu que era lésbica. Com 18 anos fiquei pela primeira vez com uma menina e tive a certeza que era de mulher que gostava. Mas, pela estrutura familiar, acabei me casando com o meu melhor amigo. O casamento foi para realizar o desejo da avó de ter bisnetos. Fiquei 14 anos num casamento que era um acordo. Não tínhamos contato físico. Só aos 30 foi viver a liberdade de ser o que é e todo o tipo de preconceito e machismo. Não foram poucas às vezes que ouvi: Virou lésbica porque não foi comida direito; Isso é modinha; Onde já se viu uma mulher com 4 filhos ser sapatão?. Aliás, a chamar de sapatão não é ofensa. Se fazem isso no modo pejorativo, pra atacar e ofender, faço questão de responder. O preconceito existe, inclusive, por ser lésbica e mãe solo, já que criou os 4 filhos sozinha. A relação com meus filhos sempre foi bem tranquila. Desde o início falei com eles sobre o novo conceito de família, conta. Como mulher - e lésbica - também tem o seu corpo objetificado o tempo inteiro. Os homens adoram falar gracinhas. Não respeitam um casal de mulheres. Também por isso, para ela, sempre será importante a celebração do orgulho LGBTQIA+. Tudo o que conquistamos até agora foi com muita luta. É preciso que as pessoas entendam que toda forma de amar é justa.
Filipe Magalhães, 32 anos, advogado que se identifica como homem gay
Foi durante a adolescência que o paraense Filipe Magalhães se identificou como homem gay. Criado numa família conservadora, ele cresceu num ambiente onde padrões machistas e patriarcais eram reproduzidos. E, para ele, foi muito difícil. Fui ensinado de alguma forma que o correto era apenas a relação heterossexual. Tive uma adolescência bem conflituosa com relação à sexualidade. Até que, aos 22 anos, saí do armário. Em casa foi aceito, mas não se sentiu acolhido. É um ponto muito conflituoso. Meu namorado não pode ir à casa dos meus pais e para mim isso é muito difícil. É como se meu relacionamento fosse clandestino e não existisse para eles. Mas em todas as oportunidades que tenho falo da minha vida afetiva. Assumido e bem resolvido, ele também sofre preconceito por ser gay. Tenho muito orgulho de ter me tornado a pessoa que sou. Por ter caminhado essa estrada inteira de conflitos internos, culpa e hoje lidar bem com a minha sexualidade a ponto de não ter nenhuma vergonha, diz. Entre suas referências está Maria Berenice Dias, a primeira juíza do Rio Grande do Sul que mudou a cara do casamento no Brasil, os direitos das mulheres e foi pioneira em reconhecer a união gay. Para ele, a luta é diária. Filipe é um dos fundadores do Puta Bloco, cortejo de carnaval que este ano desfilou pela segunda vez em Vitória, reunindo 70 mil pessoas e que tem pessoas LGBTQ+ tocando. Ir para rua se expressar livremente diz muito o que o nosso bloco que mostrar. Que a gente é livre para se expressar da forma que quiser e o tempo todo. Estar na rua, seja no carnaval ou não, é um ato de resistência. É a celebração de um lugar de autoafirmação, aceitação, comemoração das conquistas e exaltação a todas as pessoas que fizeram e fazem parte do movimento. Eu celebro o orgulho de ser o que sou, as conquistas e os nomes que já estiveram nas ruas. E deram a cara a tapa para hoje estarmos aqui orgulhosos.
André Codecco, 25 anos, técnico em radiologia que se identifica como bissexual.
A vida amorosa do capixaba era feita de mulheres e arranjos monogâmicos. Até que, há dois anos, ele se apaixonou por um homem. Me relacionei por curiosidade, não esperava que fosse me apaixonar. Foi neste momento, depois de achar estranho se apaixonar, que ele se identificou como bissexual. Filho de uma artesã e de um químico, André cresceu num lar cristão e, como na maioria das casas brasileiras, sem ouvir a pronúncia da palavra bissexualidade. Primeiro a família achou que ele era hétero. Depois começaram a o rotular como gay. Faltava era informação. A preocupação deles nunca foi com a minha sexualidade, mas como a sociedade ia me enxergar, conta. Para entender o que acontecia foi em busca de respostas sobre o que era se interessar pelos dois gêneros sem ter que abrir mão de um ou do outro. A gente cresce tendo referências de pessoas gays, lésbicas e héteras, mas não tinha de bissexual, diz. Ele também sofre preconceito. Mesmo dentro do movimento LGBTQIA+ existe um sentimento de invalidação em relação a eles, que não raramente se queixam de não serem levados a sério. É muito velado. As pessoas acham que bissexualidade é bagunça, que a gente se relaciona com qualquer um. Ainda não é comum falar sobre, mas nenhuma orientação sexual é melhor ou mais avançada que outra, diz. Após se relacionar com homem pela primeira vez, ele já namorou uma mulher heterossexual e, há um ano e meio, namora um homem gay.
Deborah Sabará, 42 anos, agente social que se identifica como travesti.
Deborah é uma sobrevivente. No país que mais mata travestis, ela está aqui para contar sua história. Nesses 6 meses, em meio a pandemia, o número de assassinatos de mulheres travestis já é maior que nos últimos quatro anos. As minhas irmãs continuam sendo assassinadas. Nascida em Santa Marta, Vitória, logo cedo ela teve que aprender a se virar. Para as travestis, o processo de transição sempre é muito difícil. Comecei a transitar aos 3 anos, todo mundo sabia que eu era uma criança diferente, lembra. A família não soube lidar com a situação e, durante a adolescência, ela teve que morar de favor. A verdade é que qualquer pessoa tem a esperança de estudar, trabalhar e ter um futuro. Mas com a travesti é diferente. A gente sai de casa sem ter concluído o estudo e 90% acaba na prostituição para sobreviver. Quem dá emprego para travesti? Comigo não foi diferente, lembra. Teve que ir paras esquinas vender seu corpo. E, com sorte, poder voltar pra casa. A cultura salvou Deborah. Através do processo cultural se envolveu com festas juninas e o carnaval. Pude aprender uma profissão. Fui aderecista, porta-bandeira, coordenei barracão de fantasia e alegoria. Isso tudo fez com que as pessoas tivessem respeito por mim. Por isso defendo tanto a inserção cultural, porque mudou a minha vida. Ela é a presidenta da Associação Gold, que desenvolve projetos sociais junto a comunidade LGBTQIA+. Sei dos meus privilégios, mas não esqueço das minhas irmãs que estão na rua. É preciso a inclusão e a permanência delas nas redes de ensino. Que todos os direitos, como nome social, convívio entre amigos e a utilização do banheiro, sejam garantidos, reivindica. Mãe de um jovem de 19 anos, ela conta que uma das maiores violências que as travestis sofrem é a relação emotiva. Nós não temos direito de ter um companheiro, um namorado. As pessoas nos veem como aberração. Isso é muito dolorido. Por isso também luta pela visibilidade. É importante sair do armário e legitimar as pautas do movimento. Defender a democracia do país é defender a resistência e a existência da comunidade LGBTQIA+. Não podemos nos acovardar.
Rafael de Alcântara Amorim, 27 anos, operador de telemarketing que se identifica como homem trans.
Rafael era o homem certo no corpo errado. Nasceu mulher e cresceu incomodada com as próprias formas. Já na infância começou a perceber que era diferente. A vida sempre foi tranquila, mas não sabia o que era. Quando me tornei adolescente comecei a paquerar meninas, mas nunca me senti lésbica, conta. Aos 23 anos, após ver um homem trans no Instagram, foi que se identificou com o gênero criado como masculino. Me identifiquei como uma pessoa trans e comecei a transição. Comecei gradualmente e foi tudo muito difícil. O próprio universo gay não reconhece o homem trans como homem, conta. Foi no Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam) que começou sua jornada, acompanhado por uma psicóloga e uma endocrinologista. As dificuldades começaram a aparecer quando começo a transição. Trabalhava como cobrador na época, um ambiente machista. E a família também não aceitou, eles não tinham dimensão do que estava acontecendo. Minha mãe respeita, mas não aceita. É o meu pai que me ama incondicionalmente, fala emocionado. Em julho de 2019, após a mastectomia total nasceu para o mundo como Rafael. A cirurgia foi uma libertação, diz. O tratamento hormonal à base de testosterona é pro resto da vida, mas batalha mesmo foi mudar o nome. Há alguns meses teve a primeira carteira assinada depois que trocou todos os documentos. Ele também se identifica como pansexual, indivíduo que aprecia e é atraído por pessoas de todos os gêneros ou orientações sexuais. Tanto que depois da cirurgia passou a se relacionar com homens. Não olho o órgão sexual, mas a essência da pessoa. Querem me colocar numa caixinha para obedecer às regras que a sociedade acha serem corretas. Mas isso não vai acontecer, conta ele que pinta as unhas e gosta de maquiagem. Para Rafael o mês do orgulho LGBTQIA+ é para celebrar as batalhas por que passou. Passei por muitas coisas, teve dia que não sabia o que ia comer. É a importante celebrar a nossa existência e para as pessoas verem outras vivências.
Natália Burock, 30 anos, médica que se identifica como mulher trans
Mineira, ela cresceu em Vitória, numa família de classe média. Filha de uma professora e um engenheiro, foi uma criança sozinha, excluída por ser considerada diferente, afeminada e nerd, o que a fez se isolar nos livros. Gostava de ler e criar histórias, minha imaginação sempre funcionou bem. Sempre fui estudiosa, meu irmão mais novo tinha dificuldades e eu que acabava ajudando, lembra. Natália sempre soube que era uma menina, mesmo tendo sido designada como menino ao nascer. Cresci achando que era a única no mundo porque não via ninguém igual a mim. Sempre soube que não era um menino. E foi os estudos que também a salvaram. Natália é residente de medicina de família e comunidade, frequentou como pioneira da comunidade trans a Universidade Federal do Espírito Santo, e foi uma das primeiras mulheres trans do estado a conseguir a retificação de sua documentação. Antes mesmo da decisão do Superior Tribunal Federal (STF), em 2018, que diz que transexuais e transgêneros têm o direito de alterar o nome social e o gênero no registro civil, mesmo quando não tenham sido submetidos a cirurgia de transgenitalização ou ao tratamento hormonal. A minha presença na faculdade conseguiu possibilitar um debate. Algo acontece e há uma série de barreiras na sociedade que impedem que muitas de nós também estejam no espaço acadêmico, diz. Há um ano ela está casada com Katherine. Nos conhecemos e ficamos amigas durante uma palestra. Mas começamos paquerar durante uma corrida de rua algum tempo depois. Pensamos agora em aumentar a família e ter um filho.
Luiza Freitas, 41 anos, empresária que nasceu intersexo e hoje se identifica como mulher trans.
Ela nasceu algumas vezes na vida. A primeira foi em novembro de 1978. Naquele dia, no hospital de Iúna, a mãe, que não tinha realizado pré-natal durante a gravidez, descobriu, na hora do parto, que seu bebê era diferente dos outros. A criança nasceu com os órgãos e sistemas reprodutivos de ambos os sexos bem formados, incluindo vagina, pênis, útero, ovário e testículos. Era uma criança intersexo, assunto que não se discutia na época. Meu cariótipo é 46,XX/46,XY, um caso raro de ambiguidade genital, em que todos os órgãos sexuais são funcionais. Mas como o masculino era mais protuberante, os médicos me consideraram menino. Fui registrada como Eli Luiz de Freitas e criada como garoto, conta. Aos nove anos ela nasceu pela segunda vez. Foi nesta idade que se reconheceu pela primeira vez como menina. Gostava de passar batom, pegava as roupas da minha mãe, mas meus pais não aceitavam. Sofreu todos os tipos de preconceitos. Na escola foi xingada, na cidade foi apedrejada na praça. Até que aos 13 anos começou a transição de gênero. Morria Eli Luiz de Freitas, nascia Luiza. Frequentou a universidade, trabalhou na área artística, namorou, teve dois abortos espontâneos, até que se tornou mãe - tendo tanto os órgãos femininos quanto os masculinos no momento do parto, uma cesárea. Minha filha representa a minha própria identidade. Precisei ser mãe, ter uma filha biológica para provar que realmente era uma mulher. Durante 37 anos ela guardou sua história para si. Hoje a minha luta é pela visibilidade e igualdade da população LGBTQIA+, transexuais, intersexo e pelas crianças que nascem como eu nasci, conta a mulher que nasceu várias vezes nesta vida.
Cezar Rocksiqh, 22 anos, designer de produtos que se identifica com o +.
Desde muito novo Cezar teve a imposição na família e a escolha de negar quem era de verdade. Durante alguns anos se viu como um menino homem gay. Há dois começou a ter crises de identidade e a perceber que não se identificava com nenhum dos dois gêneros. Cez, como gosta de ser chamada, notou que sua questão não era de orientação sexual (por quem ela se atraía), mas de identidade de gênero (quem ela era). Hoje se identifica uma pessoa não-binária travestida. Ser não-binária é fugir da binariedade de gênero imposta, transcender o ser homem ou ser mulher. Basicamente é não se identificar 100% nem como homem e nem como mulher, podendo transitar entre eles ou ser neutro, explica. Moradora de Anchieta, criada pela mãe e renegada como filha pelo pai, sabe do privilégio de poder frequentar um curso superior. Temos que entender nossos privilégios. Sei da importância de uma pessoa travestida estar cursando a faculdade porque muitas irmãs não têm essa oportunidade. Nas redes sociais faz sucesso com suas performances, ensaios e principalmente na luta pelas existências identitárias de todxs. Se a gente não pode estar indo para as ruas debater, que façamos virtualmente. Nossos corpos são políticos, temos que fazer resistência para que nossas vidas sejam igualmente visíveis. Que nossas vozes sejam ecoadas em todos os espaços e que se tornem força para a comunidade que está há tanto tempo na luta e também para quem está chegando, diz. Ela também se identifica como demissexual, pessoa cuja atração sexual surge somente quando existe envolvimento e/ou laço emocional, afetivo, e/ou intelectual com a outra pessoa, não sendo a estética o único fator determinante para o surgimento da atração sexual. Para poder me relacionar preciso ter um interesse no intelecto antes de conhecer a pessoa.
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