Neste mundo preconceituoso, a pele preta nos impõe um estado de alerta constante. Apesar de parecer exagero num primeiro olhar desacostumado com essa rotina, não é. Imagina o absurdo de alguém puxar a bolsa contra o corpo e te olhar de lado porque você se aproximou; ou o segurança acompanhar todos os seus movimentos no mercado tendo a certeza de que vai colocar no bolso algo para sair sem pagar; e entrar em pânico ao ser abordado por uma senhora achando que está na iminência de ser um personagem de uma grande confusão quando na verdade ela só queria reconhecer e elogiar o seu trabalho. Isso precisa acabar.
Não é normal que uma criança, numa experiência social entre a década de 30 e 40, aponte para a boneca negra quando perguntada quem é a malvada ou quem é a feia. Assim, na lata. De pronto. Mesmo crianças negras, escancarando o quão estrutural é esse problema. Não é normal alguém dizer que, entre um branco e um negro, prefira ser atendido por um branco, porque sim. Não é normal trocar de calçada quando a sua cabeça transforma aquela pessoa que vem lá longe numa ameaça pavorosa por causa da cor da pele. Sim, por causa da cor da pele. Nada razoável.
Faça um exercício: coloque-se no lugar de qualquer pessoa posta em suspeição, sendo rodeada por dois ou três, sem entender o porquê. Assustador, para alguns. Para outros, acrescentaria a palavra familiar.
A questão é tão complexa quanto profunda. Afinal, Barack Obama foi presidente da maior potência do planeta. Verdade, mas não estamos tratando das exceções. Elas existem e infelizmente são usadas no discurso que tenta anular diferenças raciais e desqualificar as pequenas e as grandes lutas diárias. Lutas que mesmo pessoas como Obama seguramente enfrentaram e talvez enfrentem. Parece impossível olhando para onde ele está. Só parece.
Mas há um clima diferente no ar. O grito abafado por aquele joelho assassino no pescoço de George Floyd em Minneapolis deu fôlego a milhões, de modo poucas vezes visto no mundo. Reuniu narrativas, histórias tristes, mas também força e energia.
Londrinos, parisienses, portenhos, paulistanos, australianos, capixabas, enfim, muitos sentiram-se à vontade e com vontade de reagir ao preconceito. De falar sobre racismo. Alguns agiram. Estão indo às ruas até hoje, num grito encorpado exigindo justiça, equidade, tolerância e respeito. Conversaram com os filhos, discutiram no trabalho, trocaram argumentos, discordaram, concordaram, manifestaram-se publicamente nas redes sociais, criaram hashtags, defenderam um amigo, deixaram de lado expressões que reforçam o racismo - ou, pelo menos as reconheceram -, recomendaram um colega, viram-se no lugar do outro. Choraram. Refletiram.
Para além de reconhecer naquele homem negro imobilizado e asfixiado um conhecido, alguém semelhante a um amigo que poderia estar no lugar dele, precisamos ser, todos nós, um pouco George Floyd ali naquele chão, tentando sobreviver ao mais forte, tentando falar e não conseguindo, pedindo ajuda e não recebendo. Um dia, quando escrever sobre isso não for mais necessário, acho que a gente vai ter chegado lá. Acho.
Geraldo Nascimento, editor executivo.
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