Ela foi uma das primeiras a usar o termo terrorismo nutricional, criticando uma visão crescente no mundo inteiro que divide a comida entre boa e ruim e coloca alguns alimentos na categoria veneno. Para Sophie Deram é preciso fazer as pazes com a comida, deixar as dietas e a culpa de lado. Sim, ela é contra dietas.
Engenheira agrônoma e nutricionista francesa que se naturalizou brasileira, doutora em Endocrinologia pela USP, Sophie é mais que uma especialista no assunto. É praticamente uma ativista na causa.
É defensora de uma prática recente, a Mindful Eating, que é comer com consciência, com calma.
De olho nos hábitos contemporâneos, alerta que precisamos nos desconectar do celular na hora de comer e nos reconectarmos com o prato de comida. Devemos comer sem julgamento e respeitando a fome e as emoções. Não é comer com o celular na mão. Isso pode nos levar a comer mais ou até menos do que deveria, diz Sophie, autora do best-seller O peso das dietas: emagreça de forma saudável dizendo não às dietas.
Já faz tempo que você está nessa luta contra o terrorismo nutricional, não é?
Sim. Esse terrorismo nutricional tem produzido uma verdadeira catástrofe de saúde pública. Vemos muitas dietas malucas, acompanho isso porque quero saber o que meu paciente está escutando por aí. É assustador. É um tipo de informação que representa risco de saúde! O que estou vendo, infelizmente, é que há um mercado para isso. Isso vende. Essa neura alimenta um negócio de bilhões. Vemos muitas vertentes da nutrição, como nutrição estética, nutrição esportiva, nutrição funcional... São linhas que podem ser extremamente reducionistas. Já reparou, dentro do terrorismo nutricional, que a gordura, o carboidrato, o leite, o açúcar, enfim, toda nossa alimentação está sendo criticada? Em vez de carne, falam proteína. Em vez de arroz, falam carboidrato. Com isso, estamos perdendo um lado da alimentação que é social, cultural, afetivo. As pessoas começam a usar esse discurso e a se desconectar do alimento.
As pessoas ficam meio perdidas...
É verdade. Uma vez recebi no meu consultório uma paciente de família bem modesta, do interior. Na infância ela era alimentada de forma tranquila, mas depois começou a ler revistas que se chamam de saúde, mas que veiculam notícias terroristas, que têm dicas que são tendenciosas. Aos 17 anos, começou a criticar a alimentação dos pais. Ao longo da vida, colocou torradas integrais, margarina para o coração, cortou açúcar para colocar adoçante, cortou o leite da fazenda e colocou o desnatado. Tinha culpa até na hora de comer frango com batata. Só o cardápio da revista que servia! Em 20 anos, ela ganhou 30 quilos. Isso cortando tudo, comento tudo light e diet. Apontei como o café da manhã dela virou industrializado. E perguntei: E seus pais, como estão?. Ela falou: Eles estão bem, não engordaram nada nesses últimos 20 anos. Então, a gente não pode negar que tem um mercado bem poderoso aí.
Um exemplo foi com o óleo de coco, que primeiro era o melhor alimento do mundo. Recentemente, uma pesquisadora da Harvard disse que ele é um veneno. O que achou disso?
Essa cientista, obviamente, falou errado. Ela usou uma palavra assustadora que é veneno. Mas veneno é arsênico, essas coisas. Alimentos nunca são venenos. Quando vi essa informação, pensei: será que ela realmente falou isso? Será que não foi mais moderada? Porque às vezes é difícil entender o discurso científico. As pessoas querem reduzir tudo numa frase só, mais simples. E aí ficou óleo de coco é um veneno. É um desastre, porque não é bem assim. Algo parecido aconteceu comigo quando fui traduzir meu livro para o francês. A pessoa que traduziu simplificou muitas coisas. Eu disse no livro, por exemplo, que açúcar em excesso pode aumentar risco de diabetes. Foi traduzido assim: Açúcar traz diabetes. Viu a diferença? Então, pode não ter sido culpa dela. Agora veja, no caso do óleo de coco, de fato ele foi considerado rei por um monte de picaretas, pseudocientistas, blogueiros que estão ali ganhando dindim com um discurso pseudocientífico, e o colocaram como salvador do mundo. E as pessoas passaram a colocar óleo de coco em todo lugar, se entupindo, pensando até em emagrecer. Aí é o perigo! Quer cozinhar com óleo de coco? Pode usar, mas com moderação. Eu nunca falei que óleo de coco é rei. Continuo com meu azeite e minha manteiga porque é minha cultura e não quero gastar uma fortuna com um produto que não acredito que tenha qualidades muito superiores. Isso aconteceu também com o azeite um tempo atrás, quando se via as pessoas usando azeite em uma quantidade absurda na salada.
O açúcar não é um vilão da saúde?
Colocar o açúcar como droga foi extremamente nocivo para a saúde mental das pessoas. Quantas famílias eu vi tirar o açúcar da casa. Não oferecem mais bolo na festa do filho, que passou a comer escondido nas festas. Quando entramos no radicalismo aumentam as complicações na relação com a comida, vira uma relação conturbada. Numa pesquisa, os cientistas perguntaram para as mulheres americanas o que elas pensavam quando escutavam a palavra bolo de chocolate. A maioria falou engordar, gordura, culpa. A mesma pergunta foi feita para as francesas, e o que mais foi falado foi felicidade, aniversário, prazer. Veja que é o mesmo bolo de chocolate. Se você enxerga como uma coisa que vai te engordar, quando vai comer, vai engolir, não vai se sentir bem. Mas se tem relação tranquila, sabe saborear, esse bolo não vai te engordar. Está tudo na relação que você tem com a comida. O comportamento é tão importante quanto o que você come. Quando entramos no radicalismo, aumentamos as complicações nessa relação com a comida. Vira uma relação conturbada.
E aí surgem os transtornos alimentares.
Tem os transtornos alimentes e tem uma coisa chamada comer transtornado. É quando a pessoa não tem uma relação tranquila com a comida. Existem várias definições, mas basicamente é isso. São pessoas que decidem comer tudo light e diet, começam a categorizar alimentos. Não tem essa de alimento bom, ruim, que engorda. Quanto mais conturbada essa relação, maior o risco de obesidade e transtorno mental. São os dois lados da mesma moeda. Fiz meu doutorado no estudo da obesidade, trabalho com um menino obeso de manhã e com uma menina anoréxica à tarde. É o mesmo discurso. Precisamos fazer as pazes com a comida, senão vira um comer transtornado e a pessoa perde a saúde.
Como fazer as pazes com a comida?
Primeiro tem que esquecer tudo o que você sabe sobre nutrição. A população não precisa saber sobre proteína, gordura. Tem que saber o que é gostoso, entrar na cozinha, fazer a receita. E não entrar na neura do que pode e o que não pode porque isso aumenta a culpa. Se a pessoa que pensa que bolo de chocolate é do bem, está em paz com a comida, não precisa exagerar, comer como se fosse a última vez. Quando se tem culpa, impressão que não deveria comer, isso aumenta a vontade. Ela pensa: vou comer agora e fechar a boca depois. Mas acaba comendo mais. Por isso esse negócio de foco, força fé não funciona. Quase todos os transtornos alimentares começam com uma dieta. A pessoa precisa saber que é normal fracassar na dieta, não é culpa dela. Mas há um mercado perverso que coloca a culpa na pessoa, nunca na dieta.
Para comer bem, a gente deve aprender a cozinhar?
Todo mundo sabe cozinhar! É questão de começar. Claro que nossa vida está mais tumultuada, está difícil ficar cozinhando, temos pouco tempo. Mas vale a pena resgatar essa possibilidade. E também pode ser alguém cozinhando para você, um restaurante mais caseiro! Isso é melhor do que comida pronta, de supermercado. Quando é comida de verdade, a qualidade é melhor. Uma pesquisa da Harvard mostrou que a comida fresca e caseira é a melhor para prevenção contra obesidade e diabetes tipo 2. Isso ficou provado! As pessoas deveriam ter educação culinária. Isso não é mais papel só da mãe, como antigamente. Ela é que tinha esse papel. O ato de cozinhar agora é dever de todos. E deveria ser visto como tão importante quanto escovar os dentes. Não se pode pedir a uma criança que faça o jantar da família. Mas ela pode ajudar a montar a mesa... Cada passo dentro da cozinha aumenta nossa saúde.
As pessoas não param nem para comer hoje em dia!
É verdade! Está muito difícil mesmo. A gente faz muitas tarefas o tempo todo, estamos superestimulados. E isso faz com que a gente se desconecte de sensações básicas. Comer com celular na mão, por exemplo, pode fazer a gente comer mais ou mesmo menos do que deveria. Dentro do Mindful Eating a gente incentiva a estar presente. Quer dizer desligar celular, prestar atenção no aqui agora e não no e-mail e no Instagram. Nossos avós eram comedores conscientes sem saber! Eles iam tomar café, saíam da mesa satisfeitos e não pensavam no que comer até o almoço. É um bom senso que a gente perdeu. O Mindful Eating é uma conduta que a gente aconselha. Ele prega que é preciso comer sem julgamento e respeitando sua fome e suas emoções. E entende que ter vontade é saudável, que faz parte do apetite, é natural e não prejudica a saúde. A pessoa deve prestar atenção, saber como está sua satisfação, se está bem. Será que ela está com vontade de comer doce ou está apenas triste? Se vem uma vontade de doce urgente, provavelmente não é fome. É importante ter esse autoconhecimento, autocompaixão e viver sem julgamento. Nossos avós, quando estavam tristes ou estressados, não iam descontar na comida!. Isso é recente. Não existe vício em comida, nem com açúcar, chocolate. Mas quanto mais restringir, mais vai sentir esse apelo.
Não existe, então, uma dieta ideal?
Quando lancei meu livro, em que defendo que dá para emagrecer sem dieta lancei com medo. Virou um best-seller. E quem mais leu foram profissionais de saúde. Muitos profissionais vieram me buscar, buscar meus cursos para encarar uma nutrição mais humanizada, na qual o peso é consequência das mudanças de estilo de vida. Porque na nutrição mais clássica, o profissional vira um general na vida da pessoa e quer mandar nela, dizer o que vai comer, quando. Isso não funciona! É como alguém querer mandar na sua respiração, no seu xixi. Assim que ela volta para casa, volta ao piloto automático. Isso porque é difícil mudar hábitos, especialmente em relação á alimentação. Um pesquisador disse que nós fazemos mais de 200 decisões sobre comer durante o dia - quando, quanto, temperatura, cor... Claro que a gente está no piloto automático, senão não conseguiria. Então, desenvolvi esse método que consiste uma abordagem que concilia a nutrição clássica com técnicas de terapia comportamental, entrevista motivacional e de encarar o paciente como um indivíduo único.
Você oferece um curso aos profissionais?
Desenvolvi um curso on-line para ajudar as pessoas a fazer às pazes com a comida e o corpo. Chamei ele de Efeito Sophie. Sophie é meu nome (risadas), mas escolhi esse nome também porque Sofia em grego significa sabedoria. O curso (link: https://www.sophiederam.com/br/efeito-sophie/) foi pensado para ajudar as pessoas a resgatar a sabedoria inata dos seus próprios corpos e voltar a confiar neles, fazendo às pazes com a comida. Ninguém sabe melhor do que você o que seu corpo precisa e qual é sua fome em determinado momento. Nascemos com esse sentido intato. Infelizmente perdemos ao fazer dietas, mas é possível resgatar.
Não é imprimir uma dieta e entregar na mão do paciente?
Não. Pelo contrário. É um método de empoderamento do profissional para trabalhar sem dieta, auxiliando o paciente a ser a melhor versão dele. A melhor coisa para perder o norte é se desconectar de nossas sensações, comer sem fome, comer algo que nem gosta. Isso pode desencadear uma série de problemas. A pessoa acaba com um pacote de bolacha que nem queria, mas a dieta estava tão difícil... Gosto de dizer que é a nutrição com ciência e consciência. Nossa proposta é mudar esse paradigma, em que o profissional sabe mais que a pessoa. Ele tem que ajudar a pessoa a se reconectar com ela, achar o melhor caminho da melhora dos hábitos, dentro da rotina e das características dela. Não adianta comer de três em três horas se não tem fome. Vai estressar mais do que outra coisa. Se tomou um café da manhã reforçado, depois de três horas não tem fome, pode esperar o almoço. Comer sem fome, a meu ver, é o que mais faz engordar.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta