Publicado em 26 de julho de 2018 às 21:52
Marcos Ortiz fez várias viagens na vida. Talvez a mais importante tenha acontecido no ano de 1969. A bordo de sua motocicleta, o jovem de cabelos longos viajou até a Bahia pedindo gasolina para desconhecidos. Lá descobriu o Jardim de Alah, praia que serviu de base de criação para Arembepe, a comunidade hippie mais famosa do Brasil. Eu já andava de motocicleta quando surgiu este movimento, que aconteceu em várias partes do mundo e também dentro de mim. Na Bahia eu fiquei acampado durante um mês, lembra.
Ortiz tem a alma hippie e viveu intensamente esse período. Foi maravilhoso. Aprendi a fazer sandálias com solado de pneu. Vivia-se com muito pouco dinheiro, mas éramos felizes. Foi uma época marcante, mas a alma hippie continua até hoje, conta ele, que, assim como a maioria, ouvia Jimi Hendrix e a cantora Janis Joplin. Queria transformar o mundo e obviamente esse movimento conseguiu muitas coisas, como a questão da liberdade, de cada um ser o que é, e isso foi muito marcante.
Ele também fala sem tabus sobre a relação da cultura com as drogas. Era a busca do desconhecido, do que está dentro de você. E isso acontecia através das drogas, principalmente o LSD. Ficava em jejum, ia sozinho para um lugar deserto e tomava um ácido. Fazia todas as perguntas possíveis e impossíveis, conta ele, que há muitos anos que não usa mais drogas.
Pai de sete filhos, 68 anos, o médico naturalista também comanda um famoso restaurante em Vitória. Me tornei vegetariano em 1973. Sempre frequentei o Encontro Nacional de Comunidades Alternativas, onde se discutia o conceito de medicina alternativa, o parto natural, a acupuntura e a homeopatia. O restaurante surgiu da necessidade de mostrar para as pessoas como elas deveriam se alimentar. Ortiz está tranquilo com a vida que leva atualmente, e mantém a barba branca e os cabelos compridos. Diz que pretende continuar a viagem pela estrada. Não me arrependo de nada, não gostaria que tivesse sido diferente. Só quero aprimorar o que encontrei e chegar perto da luz. Com o movimento aprendi que a vida é mais importante do que qualquer coisa. Amar é o segredo conta ele que, em breve, será vovô pela primeira vez.
Experiência no Pará
Na década de 1970, enquanto frequentava um colégio paulistano, Valéria Scanferla já se via diferente da maioria. Gostava das discotecas e das músicas com letras contestadoras. Adorava um rock e muito MPB.
O pai, um projetista, acabou fazendo a vida no Pará e, em seguida, levou toda a família para o Norte do Brasil. Ali Valéria se encontrou. No início fui contra, tinha muitos amigos e um namoradinho em São Paulo. Com a mudança minha rebeldia ganhou mais força. Mas com o tempo vi que a cidade era fascinante, tinha vida e sol todos os dias. Logo conheci uma galera bacana, saímos muito, sempre muito perto da natureza. Descobri muito rápido que a vida longe da cidade era mais feliz, conta.
A menina costumava juntar os amigos para rodas de violão ao luar, viagens de barco e banhos nos Igarapés. Foi nessa época que me juntei a duas amigas para fazer artesanatos. Todos os domingos tinha encontro com artesãos na Praça da República, vendíamos o que bordávamos e pintávamos. Eu conheci muitos malucos, nome que se dá aos hippies de estrada. Já sabia que era essa vida livre que me fascinava. Viajava muito pelos interiores e litorais paraenses, lembra ela, que adotou o estilo saias longas e chinelo de dedo.
Valéria conta que, assim como muitos hippies da época, também pegou caronas. Era divertido, mas às vezes dava medo. A relação com as pessoas era intensa e muitas vezes a gente comia e dormia na casa de estranhos que em pouco tempo já se tornavam familiares. Ela, inclusive, morou numa comunidade hippie, na Ilha de Algodoal, no Pará, no começo dos anos 80. Era um lugar paradisíaco! Não chegava carro, não tinha luz elétrica. Eu e um grupo de amigos chegamos, ganhamos um barraco abandonado pra cuidar e ficar o tempo que quiséssemos. Cada um tinha uma atividade e podíamos andar nus, e muitos andavam, porque só tinha a gente naquela parte da ilha. Foi um tempo muito bom, recorda.
Drogas ela também experimentou. Os nossos grandes ídolos morreram de overdose. A cocaína, a heroína e outras drogas pesadas já tinham destaque. Durante um tempo fumei maconha, era hábito fumar e aguçar os sentidos. A gente tomava chás, fumava. Tudo era amor e intenso, tempo de descobertas. Para mim foi uma relação muito tranquila, não tive problemas em parar. Após esse período ela voltou a morar em São Paulo por um tempo.
Aos 52 anos, mãe de três filhos, avó de três netos, casada, há alguns anos ela mora na Vila de Itaúnas, paraíso que conheceu no início dos anos 2000. Numa das visitas meu marido teve uma crise de estresse. Ele teve a certeza que tinha que abandonar de vez São Paulo e vir morar aqui. No início nos acomodamos numa suíte na casa dessa amiga, e na bagagem, além dos crochês e bolsas pintadas eu levei alguns vestidos indianos. Foi um sucesso. A princípio a turma alternativa torceu o nariz pra nossa estrutura de cidade. Depois tudo se ajeitou. Hoje comandando um dos principais restaurantes do vilarejo, ela conta qual era o ideal de vida. Era viver intensamente. Conhecer gente, viajar e acreditar num mundo melhor.
Protesto em NY
O fotógrafo Jorge Sagrilo nunca foi um hippie de carteirinha, mas esteve presente em vários momentos do movimento. Ele começou a se interessar por fotografia no ano de 1967, aos 15 anos, quando o movimento hippie já era uma realidade. Eu apenas gostava de rock, não o comportadinho dos Beatles e dos Rolling Stones, mas algo mais à frente como Cream, Jimi Hendrix, Frank Zappa e Led Zeppelin. Eu mal tinha consciência da ditadura, já que a fotografia foi tomando conta da minha vida, tudo mais era secundário. Eu naturalmente usava cabelo grande, roupas extravagantes, gírias de adolescentes, mas era muito careta, bem comportado e responsável, lembra.
Ele estudou fotografia no Foto Clube do Espírito Santo e prestou vestibular para agradar os pais. Mas tranquei a matrícula, vendi tudo o que tinha ganhado de presente por passar na universidade e falei para os meus pais: não sei se é isso que quero da vida, vou viajar para os Estados Unidos e me dar um tempo... Eles aceitaram, mas com a condição de que eu tivesse uma passagem de volta.
Chegou em Nova York em 1971, auge do movimento hippie no mundo. Foi uma mudança radical e me enturmei rapidamente. Logo teve o primeiro protesto contra a guerra no Vietnã e lá estava eu, uma experiência inesquecível. Os milhares de jovens foram paras as ruas em protesto pela paz universal, o fim da Guerra do Vietnã, o amor livre e o fim do racismo. Influenciado pelo meu ídolo Frank Zappa, achava que o flower power não levaria a nada. Mas levou, diz. Sagrilo conta que passou muito perrengue na cidade, conviveu com brasileiros exilados, curtiu o mundo artístico local com Helio Oiticica e vários outros artistas. Até que decidi voltar no sábado de Carnaval de 1973.
Por aqui, ele também participou do Festival de Verão de Guarapari, a versão brasileira de Woodstock, que reuniu a turma jovem com os mesmos ideais. O evento teve show de Tony Tornado, Milton Nascimento, Novos Baianos, entre outros. Sagrillo sempre conviveu bem com todos os tipos de pessoas as engajadas, as que usavam drogas, as reacionárias. Me único ideal passou ser a fotografia. Hoje, aos 66 anos, continuo ativo e aprendendo mais a cada dia. Acho que sobrevivi pois me adaptei com muita facilidade a esse frenesi, às mudanças radicais que qualquer pessoa da minha idade experimentou ao longo dos últimos 50 anos.
Artista com alma hippie
Filha de uma enfermeira com um artista plástico, Maria Cláudia Martins se descobriu hippie aos 16 anos, quando trabalhava como recepcionista num escritório de advocacia em São Paulo. Era toda certinha, até aceitar um convite de uma amiga para viajar para Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro. Lá me deslumbrei com a maneira alternativa dos moradores. Comprei um vestido cuja estampa eram várias folhas de maconha e, quando retornei para São Paulo, fiz questão de ir trabalhar com o ele. Pedi demissão do trabalho, pois o meu sentimento naquele momento era o de ser livre, e não ficar oito horas numa sala me sentido aprisionada, lembra. Fez teatro, participou de alguns curtas-metragens, além de uma ponta no longa-metragem Doce Delírio, com Cláudia Alencar e Eduardo Tornaghi. Também ia às aulas de circo na Academia Piolin de Artes Circenses. Nesta época, frequentei muito a noite alternativa paulistana, principalmente a Paulicéia Desvairada, onde Raul Seixas sempre se apresentava.
Maria Cláudia também viveu intensamente. Meu ideal era o de ser livre, acho que consegui, conta. Em 1983, aos 22 anos, foi de carona com duas amigas argentinas para Salvador. Tinha comigo que não podia morrer sem antes conhecer a cidade. Foram quase dois dias de viagem, dormíamos na boleia dos caminhões. Chegamos exatamente em 2 de fevereiro, dia de festa de Iemanjá. Foi tudo muito maravilhoso apesar de termos saído de São Paulo sem nenhum dinheiro no bolso. Acabei ficando em Salvador durante um ano.
O auge do movimento já tinha passado, mas ela continuou na busca da ideologia paz e amor, mesmo uma década depois. Morou numa comunidade onde todos andavam nus pela casa, frequentou festivais de música e experimentou vários tipos de drogas. A época era outra e a relação com a droga também, estava muito ligada à questão de ser livre, é claro que isso era uma ilusão.
Ela, que mora em Vitória, diz que a vida está bem mais careta. Além do trabalho, há três anos criou um ateliê artístico em casa, onde faz arte de scrapbook e Mail Art. As loucuras de antigamente já não existem mais, garante.
Os ideais de vida também são outros. Quero conseguir uma boa grana para ir viver mais perto de minha filha, em São Paulo. Já a vontade de conhecer o mundo, continua a mesma. Na verdade acho que nunca deixei de ser hippie, ao menos nos pensamentos.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta