A história do músico capixaba Elias Belmiro, 50 anos, sensibilizou os moradores do Espírito Santo. Violonista talentoso, perdeu tudo para o álcool e acabou morando nas ruas. Infelizmente, ele não é o único que vive nesta situação. Mas quando um caso desses aparece, todos se perguntam o que houve para se chegar a esse ponto. Para entender como funciona o processo cruel da doença, o Gazeta Online convidou o médico João Chequer, PHD em dependência química, que tem mais de 25 anos de experiência na área.
O médico, que também é nefrologista, conta que a família é a primeira vítima do alcoolismo, explica as diferenças no organismo de homens e mulheres em relação ao álcool e diz quem é capaz de alertar o dependente. Chequer também cita uma pesquisa recente que concluiu que "definitivamente não há nível para consumo seguro de álcool".
Doutor, A GAZETA contou a história do músico Elias Belmiro. Como é esse processo para chegar ao ponto da pessoa perder tudo e morar na rua?
Isso deve ter começado quando ele era adolescente. O indivíduo nasce, às vezes, com alguma carga genética. Se você ver a história familiar dele, é possível, mas não necessariamente obrigatório, que ele tenha tido antecedentes familiares de alcoolismo. A chamada parte biológica da doença, a parte genética. Outro aspecto que não é genético, mas é adquirido no útero, congênito, quando a mãe está grávida e bebe. Enquanto a mãe está bebendo, o bebê também está bebendo. Então adquire esse conhecimento, vamos dizer assim, do álcool, dentro do útero.
Isso mesmo com pequenas doses?
Na gravidez ou em qualquer fase da vida?
Em qualquer época da vida. E não é só a questão da dependência química, é câncer, uma série de enfermidades ligadas ao álcool. Para você ter uma ideia, se você chegar hoje em qualquer hospital e fizer uma avaliação, pelo menos 20% das pessoas estão internadas direta ou indiretamente por causa do consumo de álcool. Por exemplo: a pessoa bebe e bate com o carro, a pessoa bebe e tem cirrose hepática, a pessoa bebe e fuma e tem câncer de pulmão, fígado, pâncreas e esôfago. Sem falar de outras doenças. O indivíduo começa a beber, perde a noção do comportamento, começa a ter relações sexuais sem prevenção e daqui a pouco está com Aids, com uma série de doenças sexualmente transmissíveis.
O médico continua a falar das causas da dependência.
Como você vai dizer adquirida? Porque existe no Sistema Nervoso Central um negócio muito importante chamado circuito cerebral de recompensa ou de gratificação. Esse circuito é acionado quando a gente sente prazer. Por exemplo: o indivíduo trabalha, chega no final do mês e recebe o salário, que é a gratificação e ele se sente bem com isso. Já por outro lado, o indivíduo vai no bingo, ganha um dinheiro e se sente gratificado. Tudo que gratifica vai gerando uma tendência à repetição. Aí vem jogo, sexo, roubo, uma série de coisas. O indivíduo começa a beber e sente uma satisfação, ele então sente gratificação e o sistema cerebral de recompensa é acionado. E fica aquela memória lá, toda vez que você encontrar aquele agente, você vai sentir um prazer. E a repetição desse comportamento que gera esse prazer vai levar o indivíduo à repetição até compulsiva e obsessiva da substância. Esse que bebeu no útero ou na infância, quando tiver lá os seus 18 anos e provar o álcool pela suposta primeira vez, não será a primeira vez. O organismo vai reagir: 'Opa, eu sei o que é isso'. Esse é um aspecto biológico.
Aspecto social.
Tem o aspecto social, que é aquele frase: 'Diga com quem tu andas que te direi quem és'. A pessoa faz parte de tribos. Todos nós temos a nossa tribo. Quase sempre a gente se comporta conforme o comportamento das pessoas que a gente costuma frequentar. Cada tribo tem os seus sinais, seus aspectos. Se o indivíduo frequenta um grupo que tem no comportamento típico beber, é muito difícil que o indivíduo consiga sobreviver nesse grupo sem fazer a mesma coisa. É o aspecto social, se você vive em determinado lugar, convive com determinadas pessoas, o indivíduo vai fazer igual até por uma questão de participar. E tem o aspecto psicológico. A pessoa vai para uma festa, ela é tímida, toma um bebida alcoólica e a timidez reduz. O indivíduo se sente bem, vai namorar, dançar. Então nós fechamos o ciclo biopsicossocial.
A dependência pode atingir pessoas que não têm uma relação biológica ou social, por exemplo?
Claro. A repetição do comportamento gera o aprendizado. Toda vez que você vai em um lugar, bebe e se sente bem e repete, você vai ter a tendência natural de repetir. A repetição frequente leva o indivíduo a usar essa substância.
Para dormir a pessoa bebe, quando está triste bebe...
Exatamente. O indivíduo começa a usar a bebida como medicação, para dormir, tranquilizar... Isso é uma coisa que se chama sensibilização. O indivíduo fica sensibilizado pela bebida e aprende que usando álcool vai ter uma recompensa, um bem-estar.
E a tolerância?
O indivíduo começa tomando um copo de cerveja ou uma dose de destilado e aquilo satisfaz. Só que o organismo vai se acostumando com essa quantidade. De repente, aquela quantidade já não dá ao indivíduo a mesma sensação de gratificação. O que ele aprende a fazer? A aumentar a dose ou diminuir o intervalo. A cachacinha do hora do jantar, daqui a pouco ele vai tomar duas, depois três. A pessoa que só toma uma cerveja no final de semana vai tolerando mais e vai começando a tomar mais frequentemente ou em quantidade maior.
A pessoa não percebe que está aumentando.
Dirigir depois de ter bebido, vai para uma roda e começa a brigar. Se você fizer um levantamento, de 60% a 70% dos homicídios que ocorrem entre o fim de expediente do trabalho da sexta-feira e as madrugadas de domingo, ocorrem por motivos banais, em periferias de bairros. Isso tem a ver com o consumo de bebida alcoólica. O indivíduo só não nota como embarca em série de comportamentos com elevadíssimo risco.
Consequências.
O que vai acontecendo, à medida que o indivíduo vai se tornando dependente - o que deve ter acontecido com esse músico -, ele vai perdendo tudo. Perde a profissão, o interesse pela família, os amigos. E vai fazer o quê? Vai para a rua. Deteriora completamente o seu comportamento, as suas atitudes. Isso sem falar nas outras doenças que o álcool provoca, como a degeneração do Sistema Nervoso Central, atrofia cerebral, que pode levar a um quadro de demência precoce. Se o indivíduo também fuma, pode ter tumores malignos no pulmão, na árvore respiratória de maneira geral. Para você ter uma noção, de 30% a 35% de todos os cânceres têm a ver com álcool e/ou cigarro. Câncer de rim, bexiga, pâncreas, tudo digestivo todinho.
Doutor, quem tem um vício dificilmente admite. Como a família pode ajudar nesse processo?
Agora, quando é a mulher que bebe, o marido larga a mulher, larga a família. O homem não aceita a mulher bebendo, de modo geral. Ele desfaz a família rapidamente. Quem o indivíduo acaba obedecendo, de certa forma, é o patrão. O último lugar que o indivíduo leva o problema da dependência química é o serviço. O colega diz para ele parar de fazer isso porque vai perder o emprego, vem o supervisor, até que chega no gerente. A lei obriga as empresas a oferecer tratamento, dependendo do tamanho da empresa. Quando trabalha em um lugar menor, é longo mandado embora e pronto. É lá no emprego que ele vai ter a maior pressão. Em casa ele ou ela já ultrapassou os limites, os amigos já estão bebendo junto, aí já não tem influência. A família procura ajuda, mas a pessoa não quer. Já o patrão pressiona um pouco até que o indivíduo joga tudo para o alto e vai para a rua.
O que faz a pessoa querer o tratamento?
Quando o indivíduo chega ao fundo do poço, só tem um caminho, que é para cima. Agora se ele não aceita a doença, não aceita os riscos da enfermidade, ele vai continuar nesse calvário até morrer. Se a pessoa foi socorrida em tempo e se conscientizou dos males que está causando a si própria, à família, ao trabalho, à sociedade, ela pode aceitar o tratamento. Aí entra um problema que são as internações compulsórias. A pessoa, às vezes, é internada sem querer fazer o tratamento. Fica lá meses e, o dia que abre a porta, vai voltar ao mesmo comportamento, porque não estava dentro dela o interesse em fazer o tratamento. Era apenas uma obrigação judicial. Agora se você tira a pessoa daquele consumo, leva para uma clínica, com o tratamento que envolva a parte psicológica, espiritual, comportamental. Tem um tratamento chamado cognitivo comportamental e funciona bem, se a pessoa aderir. De todos os tratamentos, no caso do bebedor, o melhor é o Alcoólicos Anônimos, que é uma psicoterapia de grupo importantíssima e gratuita. Faz bem à pessoa e existe em cada esquina do mundo inteiro. O indivíduo tem que querer. Quando o indivíduo aceita o tratamento, sentiu o fundo do poço, ver as perspectivas de que a vida vai melhorar, há um retorno familiar, a chance de recuperação é grande. Mas tem que fazer o tratamento pós-internação. Aí essa pessoa começa a falhar as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Alguém oferece uma cerveja, ele não aceita, o outro faz uma brincadeira, começa a mexer com o orgulho próprio. Depois da primeira dose, vai embora. A situação fica complicada.
A família deve cortar a bebida também no ambiente familiar?
É claro. Mudar o estilo de vida implica em não frequentar lugares. Isso implica na mudança de comportamento familiar também, os filhos, a mulher, o marido. É a mudança em benefício da família.
Doutor, com toda a sua experiência, o senhor indica ou não o consumo de bebida alcoólica?
Não sou preconceituoso. Não sou contra nada. Costuma-se dizer que, com moderação, tudo é possível. O que acontece é que, como você não sabe quem vai desenvolver a doença de dependência química, eu não acho que as pessoas deveriam fazer uso da bebida alcoólica como se estivessem fazendo uso de um pirulito. Se fala que um pouco e vinho é bom todo dia. Está provado que uma pessoa que toma um copo de vinho tem um risco grande de desenvolver outras enfermidades. Mas a pessoa fala que é bom para o coração. Melhor para o coração é dar uma caminhada todo dia. Se quiser usar as substâncias que têm no vinho, toma o suco de uva vermelha e faz o mesmo bem.
Relação com as mulheres.
Ser for do sexo feminino, pior ainda. O homem tem algumas enzimas no estômago que destroem uma parcela do álcool e a mulher não tem. Chama-se ADH, a mulher não tem isso no estômago. Quando a mulher bebe, um percentual de álcool maior vai para a circulação. Aí a mulher vai desenvolver a doença mais depressa. Não só o alcoolismo, mas as consequências graves, como o câncer.
Tem uma dose mínima aceitável.
Não há quantidade segura. Não existe.
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