Em tempos de confinamento, o simples fato de sair de casa para jogar o lixo fora pode ser motivo de constrangimento. E como se não bastasse o olhar censurador das pessoas para quem elas consideram - ou realmente são - grupo de risco, há dentro da maioria das casas a expectativa da chegada do pânico. Olhamos direto pela janela à espera dele. O pânico de não poder ir à padaria, pegar o pão para o café da manhã; ao supermercado, pra comprar aquele ingrediente que faltou para o almoço; ou simplesmente dar uma descida até a rua pra tomar um pouco de sol e sentir o ar fresco. O pânico de não poder ir até o final do corredor depositar o lixo no local correto.
Somos humanos, seres sociáveis. O brasileiro, então... Adoramos um abraço, um beijo... Adoramos nos reunir e arrumamos motivos pra comemorar. Por isso, pra nós, talvez mais do que para qualquer outro povo, os efeitos da quarentena podem ser devastadores. Especialistas garantem que durante períodos de isolamento, o mal estar psicológico pode se instalar, fragilizando nossa capacidade de adaptação e reação ao estresse e produzindo respostas fisiológicas e emocionais que podem impactar nosso sistema imunológico e nosso equilíbrio mental.
A psiquiatra Leticia Mameri explica que o isolamento social gera uma dualidade nas pessoas. Inicialmente, segundo ela, vem a euforia, e as pessoas pensam: "vou estar em casa, vou estar de férias". Depois vem o pânico. "Toda situação de crise faz com que as pessoas reajam no seu sentido mais primitivo. Tem pessoas que vão ficar desesperadas; outras, imóveis; outras, deprimidas, agressivas...", enumera ela. Como no "Ensaio sobre a cegueira", de Saramago.
A psicóloga Janaina Ferreira Pereira acrescenta que estamos todos, em algum momento, experimentando o sentimento de repulsa por parte do outro. Mas que, infelizmente, o preconceito não é novidade em nosso país. "Há diversos estudos sobre preconceito racial, de gênero e de classe social que apontam os efeitos negativos tanto para quem sofre quanto para quem segrega", declara.
E esse cenário pode desencadear a abertura de quadros psiquiátricos e piorar os já instalados. "Pessoas que têm um Transtorno Obssessivo Compulsivo (TOC), ligados a organização e limpeza, por exemplo, podem ficar piores, podem descompensar. Pessoas com quadro de trastorno de ansiedade generalizada também tendem a piorar, assim como as pessoas com quadro depressivo, com uma visão mais pessimista da vida", explica Letícia Mameri.
A boa notícia é que esse nosso filme pode sim ter um final feliz. A psiquiatra garante que há formas de driblar o pânico ou não deixar que ele se instale. Usar a linha da psiquiatria positiva é uma delas. "A gente tem duas formas de ver as coisas que acontecem na nossa vida, como um livramento ou como um castigo. Normalmente no cérebro tente a pensar no castigo, por isso precisamos treinar nossa mente para olhar para o positivo. E é isso o que a ciência da felicidade trabalha".
A psicóloga Janaina concorda. "Há estudos que apontam os efeitos positivos de atitudes solidárias e de cuidado com o próximo. Podemos escolher: ou reclamamos e nos afastamos dos supostos contaminados ou refletimos sobre nossas atitudes e aprendemos com a experiência. O isolamento físico necessário não deve impor isolamento afetivo. Seu vizinho está isolado? Que tal mandar mensagens de otimismo e afeto por debaixo da porta?", sugere.
Letícia pode falar com propriedade sobre os efeitos de uma ação como essa. Há dias ela está em um isolamento voluntário, com gripe e febre. "Não é simples. Na verdade pode ser desesperador. E se na gente, que é médico, já sofre com isso, imagina nos pacientes e nas pessoas mais carentes. Tenho feito o máximo de coisas que me gerem prazer", conta. E também tem indicado isso aos seus pacientes. "Vou iniciar uma pesquisa científica com um colega, estou cuidando da casa, lendo muito, algo que adoro, assistindo filmes... Coisas que sempre gostei e que não me permitia fazer há algum tempo por conta do dia a dia corrido", diz.
Ver a crise como oportunidade é outra dica das especialistas. Uma oportunidade de ficar mais com as crianças, jogar cartas ou jogos de tabuleiro, de se aventurar na cozinha, desenvolver novas atividades... Enfim, ficar integrado dentro do próprio núcleo familiar, algo raro nos dias de hoje. "É preciso investir porque parece que as pessoas não sabem mais fazer isso. O distanciamento físico das pessoas já estava ocorrendo em função da tecnologia. Muitas pessoas não têm intimidade dentro da própria familia. Só que elas vão ter que desenvolver isso. E têm que entender que isso é possível", explica a médica.
Letícia e Janaina acrescentam que tudo o que estamos vivendo hoje é de uma complexidade muito grande. E que não sabem ainda como vai ser o resultado da quarentena, do ponto de vista de saúde mental, para todos nós. Mas garantem que sempre há algo bom pra tirarmos do que estamos vivendo. A psiquiatra ainda sugere um desafio. "Se pergunte o que está precisando resgatar, não só pra você, mas para quem está a seu redor. A gente tem que fazer essa pergunta, tentar responder e colocar em prática, tentar aplicar. Se a gente não para, o mundo para a gente, de alguma forma".
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