Imagine que você se esforçou para construir um carrinho e levá-lo até o topo de uma montanha-russa. Já sem fôlego, depara-se com a imensa descida tentando reunir as poucas forças que restam para deter ou, ao menos, abrandar a queda. A energia gasta contra a gravidade é tanta que você mal consegue sentir o frio na barriga e o vento bagunçando o cabelo. Observar a paisagem? Nem pensar…
A cena narrada pela psicóloga Ana Luísa de Araújo Dias, mestra em Saúde Comunitária pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), nos remete ao cansaço e à frustração que surgem quando perseguimos o mito de que o sucesso depende apenas de nós.
São muitos os slogans da sociedade capitalista ocidental que glorificam o esforço individual como pilar exclusivo para alcançar o que desejamos – ou para cumprir o que se espera de nós. Você certamente já deve ter ouvido: é só ter força de vontade que você chega lá.
Mas será realmente possível segurar todo esse peso sozinho sem quebrar ou, ao menos, trincar? Uma escolha mais sábia, aponta Ana Luísa, seria sair da parte de trás do carrinho, de onde tentamos controlá-lo, para estar dentro do veículo fluindo com o que a vida nos propõe e contando com o empurrãozinho que ela pode nos oferecer.
“Em alguns momentos, a transformação do céu, da terra e dos seres ao redor caminha na direção contrária ao sentido que queremos tomar”, diz Wagner Canalonga, mestre regente da Sociedade Taoista de São Paulo.
O taoismo, tradição religiosa do Leste Asiático, propaga a ideia de esvaziar o coração do excesso de apegos, preferências e referências a fim de liberar espaço para que as nossas transformações estejam alinhadas às constantes mudanças do Universo. “Em vez de forçar a barra em cima daquilo que queremos, podemos diminuir no nosso coração o excesso de desejos e contemplar o que verdadeiramente nos é essencial”, diz. “Quando nos aliamos à corrente, usufruímos daquele movimento e podemos obter grandes resultados.”
Isso é importante, inclusive, para saber a hora de se proteger. Se um tsunami vem na sua direção, tentar enfrentá-lo pode te destruir. Nesse caso, a escolha mais acertada seria ficar em um abrigo até as águas se acalmarem. Não por acaso, a meditação é propagada por essa e outras correntes filosóficas como uma das formas de nos familiarizarmos com os movimentos da natureza interna e externa em busca de um maior equilíbrio com o fluxo da vida.
Marcia Baja, praticante de budismo tibetano por 25 anos e organizadora de retiros contemplativos, sugere pequenas pausas meditativas ao longo do dia. É possível fazer isso se sentando em silêncio por alguns instantes para observar a realidade e a si mesmo, sem julgamentos.Assumindo um lugar de não saber, como o de uma criança que vê algo pela primeira vez, abrimos espaço para o que chega: seja a voz de alguém, uma imagem, sensações ou pensamentos. Assim, nos desarmamos de reações automáticas e podemos descansar no que somos e no que a vida nos apresenta.
“Quando a gente repousar nesse corpo como consciência presente e se soltar da inteligência de interpretar a realidade, a gente vai viver uma ampliação que não tem nem como explicar. A gente vai se ver para além da luta que tem sido a vida até esse instante”, revela Marcia.
No livro “ O Caminho para Si Mesmo ” (Vozes), a analista junguiana Verena Kast escreve: “Nós não somos simplesmente lançados para dentro da vida. Nós somos também sustentados e carregados por ela”. Na sociedade racional e materialista em que vivemos, ficamos cegos para o que sustenta a vida.
Nesse cenário, reconectar-se com o corpo, o chão e a respiração é o primeiro passo para voltar ao que realmente importa. Mais fortes internamente e confiantes nos movimentos revelados pelo tempo, já não precisaremos nos esforçar tanto. “A pessoa que medita presencia o mistério que é essa teia, forças regendo, sem explicação, o ciclo de vida, morte e vida”, diz Marcia.
“A ideia de que uma pessoa pode fazer sua trajetória de ‘sucesso’ sozinha é tóxica, fonte de uma insatisfação crônica, insufla o desejo contínuo de conquistas e se opõe a fragilidade”, alerta o doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e escritor Renato Noguera.
Na filosofia sul-africana ubuntu, cita ele, está na comunidade , coletivo que deve englobar não apenas os vivos, mas também os ancestrais e os que ainda virão, a solução para o individualismo exacerbado. “Nossas ações devem levar em conta que somos interdependentes, assumindo a responsabilidade de deixar tudo que recebemos das gerações passadas mais bonito para as futuras”, indica. “Não cabe carregar o mundo nas costas, mas compartilhá-lo”, diz.
Segundo Noguera, o reconhecimento de que não controlamos tudo nos habilita a entrar no elemento essencial da vida: o mistério. “Afinal, viver é um milagre”, resume. “A filósofa burquinense Sobonfu Somé argumenta que existe uma canção do espírito, um ritmo próprio da vida que torna as existências plenas de sentido.”
O filósofo traduz espiritualidade como o conjunto de potências do espírito que buscam organizar harmonicamente as relações. “Ela tem como função convidar as pessoas a lidar com os desafios da vida sem ressentimentos, assumindo radicalmente todas as ofertas, sejam doces, amargas, pálidas, coloridas, frias ou incandescentes. Serve para compreender que a alegria, a tristeza, o luto, a saudade e todos os afetos devem ser acolhidos como presentes.”
O excesso de força de vontade e intencionalidade, por outro lado, pode provocar medo, ansiedade e obsessões em torno da conquista. “Os esforços devem ser do tamanho do que somos capazes de suportar, fazer esforço demais ou menos do que somos capazes pode dificultar encontros mais confortáveis conosco”, frisa Noguera.
O Sankofa é um princípio africano representado por um pássaro com os pés fincados no presente, olhando para trás e carregando um ovo no bico. Ele nos ensina que é preciso regular a força com a qual nos apegamos ao futuro. Afinal, se agarramos o ovo com muita força, ele pode quebrar e, se o deixamos muito frouxo, o risco é de cair.
Abdicar de um controle rígido sobre o que nos acontece não significa deixar de ter agência sobre o que queremos construir. “Nossos caminhos não são predeterminados, mas nós temos o papel de escolher a força ou a leveza, ajustar de que modo a gente está segurando esse futuro”, diz a psicóloga Ana Luísa.
A especialista ressalta a noção de circularidade trazida pelas filosofias africanas em contraposição à ideia de um caminho reto e para o alto e avante, como estimulado nas sociedades ocidentais. “Isso contraria essa lógica de que ‘eu vou’, ‘eu faço’, ‘eu quero’, ‘eu consigo’ porque eu preciso olhar que há algo muito maior do que eu mesma, do que a minha existência aqui, que é ponte desse passado e do que virá.”
Natural de Salvador, Bahia, Ana Luísa sente na pele o quanto a população negra, mais da metade dos cidadãos de um país de passado colonial e escravocrata, sofreu e brilhou para que ela chegasse até aqui. Como frutos dessa trajetória, o fosso das desigualdades encolheu um pouco enquanto a representatividade aumentou.
Entretanto, ela reconhece que há ainda um longo caminho de semeadura para florescer um Brasil mais justo e igualitário, humano e respeitoso. “É me pensar não apenas como indivíduo, mas enquanto parte de algo que eu vou, ao mesmo tempo, colhendo e cultivando para as próximas gerações”, propõe ela, que é parceira do AMMA Psique e Negritude, centro de formação, pesquisa e referência em relações raciais.
O ser humano como o centro de tudo, senhor absoluto da realidade, faz parte da lógica separatista construída na modernidade, explica Aurino Ferreira, professor de psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde coordena o Núcleo Educação e Espiritualidade. Nessa perspectiva, humano e natureza, corpo, espírito, mente e matéria são tidos como entidades distintas, quando, na verdade, esses elementos estão interligados.
“A pandemia e a crise climática são prenúncios gritantes dessa falha da lógica de separação. No entanto, a gente segue insistindo nela”, pontua. E acrescenta: o que é vendido como força pode nos enfraquecer e limitar: “A gente pensa que pode sobreviver sem a natureza. Essa lógica de super homens e supermulheres que podem dar conta de tudo limita as possibilidades de expansão dos sujeitos.”
A perspectiva de que os humanos estão no topo da cadeia evolutiva vem sendo questionada por perspectivas ameríndias e africanas de interdependência, situa o especialista. O recomendável, ele defende, é sair do isolamento e nos perceber de maneira mais abrangente a partir de lógicas coletivas, sistêmicas e solidárias.
“Essa ideia de que temos total controle da vida leva a muitas frustrações porque é irrealizável. A noção de uma pessoa perfeita que autogerencia seu tempo, seu trabalho e suas relações resulta em sofrimento psíquico”, conclui a psicanalista e antropóloga Marilande Martins de Abreu. Professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), ela lembra que a espiritualidade tem o papel de nos ajudar a lidar com as frustrações. “Ela dá espaço para o acaso, para aquilo que você não controla.”
O Tambor de Mina, religião afroameríndia popular no Maranhão, tem raízes matriarcais e vê na natureza as maiores regentes da vida, explica a pesquisadora “Isso cria vínculos entre as pessoas e o ambiente no qual elas estão inseridas”, afirma.
O terapeuta indígena Ubiraci Pataxó, membro do Comitê de Saúde Mental do Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integral (CABSI), concorda que a união é a melhor forma de nos fortalecer: “Ninguém é melhor do que todos nós juntos. Essa é a nossa força”, diz. Veja o exemplo das formigas, abelhas e gafanhotos, que andam em grupo, embora mantenham suas especificidades. “Todo predador separa seu alvo do bando. Sozinho é muito mais fácil ser caçado, destruído ou desestimulado a continuar”, diz.
Aprendiz de pajé na aldeia de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, na Bahia, Ubiraci exalta as forças do invisível. São elas que sussurram o caminho a seguir ou que rota abandonar para não nos distrairmos da nossa missão fundamental. “Não somos páginas em branco nem que começam a ser escritas a partir do nosso nascimento. A ciência já comprova que o DNA traz memórias, partes dos nossos ancestrais”, diz. “Se a gente olhar bem, somos a criação de várias outras criações.”
Elementos inconscientes e espirituais nos regem em situações de perigo nas quais precisamos proteger a nós ou a quem amamos. São eles que nos fazem encolher automaticamente quando algo explode ou subir um muro alto quando é preciso fugir, ainda que em outros momentos não sejamos capazes de tamanha potência.
Foram essas mesmas forças que salvaram seu pai, o pajé Itambé, de tentativas de assassinato por proteger seu território ancestral, conta Ubiraci. Armas, quando apertado o gatilho, não funcionavam. Algozes juravam que Itambé estava andando com uma multidão em caminhos pelos quais pajé passava sozinho. Em outros momentos, os inimigos simplesmente não conseguiam enxergá-lo. “Existe uma proteção espiritual. Cada cultura tem sua forma de acreditar, mas a gente sente que tem algo nos protegendo ou limpando os caminhos antes de a gente chegar”, observa.
E você? Tem dado passagem ao inexplicável? Ou se esforçado para forjar cada passo? Achar que está apenas sob nosso poder determinar o fluxo da vida, é pequeno demais. Renunciar ao controle pode ser desconfortável a princípio, mas nos conecta com a imensidão. A teia da existência sustenta o imponderável, nos levando a lugares e aprendizados que jamais imaginaríamos. Nos carrega para o que a alma realmente deseja. É preciso confiar no mistério e deixar a vida nos guiar em sua direção.
Por Martina Medina – revista Vida Simples
Jornalista e ariana-virginiana. O tempo a tem ensinado a compartilhar o peso com a vida – e o quão libertador isso pode ser.
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