Em vez de uma praia paradisíaca, de mar cristalino, a foto mostra a sala com o velho sofá. No lugar da selfie no restaurante badalado, a imagem do ventilador de teto. Não tem glamour, luxo, altas produções. São lugares e objetos banais, pessoas sem maquiagem, com olheiras e cabelo despenteado.
É a proposta da BeReal, uma nova rede social que encoraja os usuários a compartilharem momentos reais do dia a dia. É uma foto por dia, com as câmeras frontal e traseira, sem filtro, sem curtidas, sem influenciadores.
"Ele não fará ninguém famoso", dizem os fabricantes do aplicativo. O objetivo é fazer as pessoas ficarem menos tempo naquele espaço online. Por isso, é apenas uma foto por dia, que tem que ser feita em dois minutos, sem chance para edição, exatamente de onde se estiver.
Criada em 2020, a plataforma tornou-se popular com uma rapidez impressionante: está instalada em mais de 7 milhões de celulares. Surgiu como uma provocação ao Instagram, como se o que é exposto no feed e nos stories fosse muito fabricado, fake até.
O sucesso da BeReal pode explicar um movimento que vem mobilizando muita gente mundo afora por uma vida mais autêntica, menos manipulada, dentro e fora da internet. Uma tendência de se voltar ao natural, com um cabelo sem química, tal como o original, ou sem tintura, com a cor real. Ou de se buscar uma aparência física menos artificial, onde os defeitos não são escondidos.
Para a psicóloga Maria Carolina Roseiro, a relação das pessoas com as redes sociais reflete muito como é a sociedade atual. "As redes sociais fazem uma mediação das nossas relações que coloca investimento demais no outro. Não um 'outro' que faz uma relação recíproca. Então, é como um espelho. Um espelho que coloca na gente a necessidade de enxergar nele aquilo que a gente quer ver. E queremos ver o que a sociedade valoriza", analisa.
O complicado é colocar nas redes sociais expectativas muito padronizadas. "O que tem que se discutir nas redes sociais não é se elas são reais ou não. E sim como elas padronizam as coisas", observa a psicóloga.
Talvez, por isso, pesquisas recentes estejam apontando um impacto negativo desses conteúdos sobre a saúde mental das pessoas, sobretudo as mais novas, associando o uso de Instagram, TikTok a problemas como depressão, ansiedade e distúrbios alimentares.
Para as gerações mais novas, destaca Maria Carolina, existe essa confusão entre o real das redes sociais e o real da vida delas. "Não há essa distinção entre os chamados nativos digitais, que já criaram vínculos e mantêm relações por meio de trocas nesses aplicativos".
Mesmo assim, o que se vê são os jovens buscando experiências de fato reais fora das redes. "Talvez porque estejam com uma demanda por uma interação mais presencial", avalia ela.
Na visão da psicóloga, não há problema no uso dos filtros. "Isso desde que esses filtros não sejam um parâmetro, uma expectativa de se alcançar na realidade, sabendo que aquilo não é real".
Não à toa, uma pergunta viralizou recentemente em muitas redes sociais, inclusive no Instagram: "E fora dos stories, como você está?". Uma tentativa de discutir se não deveria haver espaço ali também para o cansaço, a tristeza, a solidão.
Para a dermatologista Isabella Redighieri, o uso exagerado de filtros nas mídias sociais, além de photoshop e outros programas de retoques de imagens e que fazem correção de imperfeições nas fotos, influenciam diretamente as pessoas a desejarem essa perfeição.
"Mas essa perfeição, no fundo, não existe. E isso leva a uma busca incessante por uma aparência irreal. Também gera frustração, ansiedade e baixa autoestima", opina.
Essa fixação no "perfeito" vem acompanhada de uma insatisfação permanente, levando pessoas a buscarem procedimentos de resultado imediato com profissionais nem sempre qualificados. E o efeito costuma sair o contrário do desejado. Daí a polêmica com a chamada harmonização facial.
"O exagero causa estranheza e isso não é o que almejamos quando pensamos em harmonia. O significado de harmonia é 'a combinação de elementos ligados por uma relação de pertinência, que produz uma sensação agradável e prazerosa'. Mas quando observamos alguém e conseguimos identificar de forma negativa algum procedimento estético que tenha realizado, provavelmente houve um exagero em quantidade ou falta de senso estético, por parte do paciente ou do profissional", diz Isabella.
O que se vê atualmente é uma busca por tratamentos menos invasivos, pouco ou nada agressivos, que não alterem muito a fisionomia do paciente.
"Sempre preconizei essa linha de tratamento, pois acho que o que fazemos preventivamente e conseguimos manter é o que realmente trará resultados naturais e duradouros. Não adianta uma pessoa preencher o rosto com 20 seringas de ácido hialurônico, se a pessoa não tratar a qualidade da pele e a flacidez, por exemplo. Além de ter que refazer esse preenchimento todo ano, com o tempo as características naturais vão se perdendo em meio a tantos mls de produto", ressalta a médica.
O ideal é respeitar as características de cada um, segundo Isabella: "O importante é evidenciar pontos estratégicos que embelezam, repor o volume de um lábio que ficou mais murcho e assim por diante. Fazendo pequenas correções, respeitando os limites do que é belo naquele rosto".
A psicóloga Maria Carolina Roseiro vê como algo positivo essa intenção das pessoas de quererem se sentir mais satisfeitas consigo mesmas, sem tanta pressão. Por outro lado, ela não vê o novo aplicativo como algo promissor na ânsia por uma relação mais saudável com o meio virtual.
"Essa busca pelo supernatural, pelo super-real também é fantasiosa. Não necessariamente vai resolver esse impacto na saúde mental porque ali também todos são estimulados a perseguir um padrão, um ideal que não existe", comenta.
Ela ainda destaca que não é bom ficar capturada na expectativa social, ainda mais quando é super estrita e padronizada como se vê no instagram. "Mas também não é bom entrar numa busca pelo ultrarreal, pelo super verdadeiro da normalidade. Nosso dia a dia é frustrante às vezes, é simples, é 'sem filtro', mas também é importante ter espaço para a fantasia. Desde que isso seja compreendido como fantasia".
O problema, segundo a psicóloga, é como levamos a vida para dentro da rede social e a rede social para a vida.
"Isso é um sintoma da nossa questão atual com a mediação, o que tem a ver com evitar confronto, formar bolhas, com não lidar com a frustração. A gente tem poucos espaços de convívio, forma pactos de relação muito à distância, prejudicando nossa capacidade de lidar com conflitos, com as diferenças, com nossas limitações. E são esses conflitos, as diferenças e as limitações que tornam as relações mais consistentes, duradouras e que não se fragilizam por coisas pequenas do dia a dia".
Para Maria Carolina, não dá para ignorar as redes sociais ou imaginar que elas não terão impacto no nosso comportamento. O que falta é uma educação para lidar com esses espaços. "As pessoas têm acesso hoje a ferramentas que manipulam a realidade delas. Isso, por si só, não é ruim. O ruim é se fixar demais em expectativas fantasiosas".
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