Difícil encontrar uma mulher que não tenha vivenciado uma relação abusiva. Das cenas de ciúmes ao feminicídio, essas são marcas de relacionamentos sustentados no poder de um sobre o outro, em vez de afeto e respeito. Também não é fácil o caminho para sair de um enredo de violência, muitas vezes naturalizado ou forjado como ato de amor. Mas é, sim, possível mudar o rumo dessa história e não voltar para o abusador.
Pôr fim a um relacionamento abusivo, porém, não está nas mãos apenas da mulher vítima da violência. Ela precisa de suporte, tanto da família e amigos quanto do poder público. Com acolhimento, sem julgamentos.
Renata Bravo, mestra em Direitos e Garantias Fundamentais e idealizadora do coletivo Juntas e Seguras, diz que o grupo criado para dar apoio a meninas e mulheres na pandemia é uma alternativa, inclusive com indicações de locais para buscar ajuda.
Renata, que também é articulista em A Gazeta, reconhece, no entanto, que não se trata de uma tarefa supersimples.
Não é só arrumar as coisas e sair de casa porque, além da dependência emocional, muitas vezes também há a dependência econômica; é ele quem controla o dinheiro. A forma de saída para essa mulher é mais um movimento externo que dela. O que quero dizer é que toda a sociedade, os coletivos, a mídia, como neste projeto Todas Elas, têm que dizer se está em um relacionamento abusivo, tem muita gente para te apoiar.
A mulher, orienta Renata, deve sempre ter uma amiga, uma colega de trabalho de quem seja confidente e possa contar o que se passa na relação. O problema, na maioria das vezes, é que em uma união marcada por abusos, um dos atos de violência é justamente afastar a companheira da família e amigos, a deixando isolada.
Sendo amiga ou parente de uma mulher numa relação abusiva, é importante que se faça presente, ainda que não concorde com o relacionamento. Nossa tendência é nos afastar, afirmando estou falando e ela não enxerga. Mas é fundamental mudar essa postura e dizer quando precisar, estou aqui. A rede de apoio não é só do Estado, de quem é dever amparar, mas somos todos nós, frisa.
Doutora em Psicologia e professora da Faesa, Mônica Nogueira ratifica esse posicionamento, ao comentar a dificuldade de se quebrar o ciclo de violência.
O término é um momento crucial da relação abusiva e digo que, sem intervenção social, sem apoio, a mulher não vai conseguir. Em geral, as pessoas não entendem e julgam: vou ajudar e amanhã vai estar com ele de novo", afirma.
Dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) apontam que, dos 81 assassinatos de mulher até o dia 8 de novembro registrados no Espírito Santo, 19 foram validados como feminicídio pela Polícia Civil. Na maioria das ocorrências, o companheiro (38%) ou ex-marido (38%) estiveram envolvidos nas mortes.
Essa demonstração de apoio e de estar presente é imprescindível para a mulher se sentir fortalecida a sair do relacionamento. Brunela Vincenzi, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenadora do Laboratório de Pesquisa sobre Violência contra Mulheres (LAPVIM) da instituição, atesta que esse é um contexto que muitas vezes se mostra mais seguro para as vítimas, uma vez que, em sua avaliação, o poder público não tem conseguido garantir a proteção permanente.
Se houvesse uma estrutura de segurança completa, a melhor coisa, ao primeiro sinal de violência, seria ir à delegacia e fazer a denúncia, pedir ordem de afastamento. Mas eu tenho percebido que, mesmo com a possibilidade de denúncia, tem-se optado por outra estratégia porque não há estrutura para proteger a mulher depois. Não tem ninguém que garanta que o agressor vai ficar afastado ou que, se em algum momento chegar perto, não vai matá-la, analisa.
Assim, Brunela é mais uma especialista que recomenda que as mulheres não deixem de contar para a família e amigos se estiverem vivenciando alguma situação abusiva. Às vezes, o silêncio, por vergonha ou medo, é o que também favorece a violência e dificulta a tomada de decisão pela saída do relacionamento. Contando com uma rede de apoio, a vítima se sente em melhores condições para dar o passo em direção a uma vida sem abusos físicos e emocionais.
Contudo, o que muitas vezes ocorre é que a mulher, mesmo numa união marcada pela violência, precisa enfrentar a pressão social para que mantenha a relação, principalmente quando há filhos envolvidos. É sobre os ombros dela que fica o peso de garantir o felizes para sempre, ainda que seja constantemente agredida. Há uma questão cultural, o machismo prevalecendo na conduta da sociedade, constata Renata Bravo, do Juntas e Seguras.
Desde pequenas, as mulheres são construídas para viver um sonho de princesa, sonho de casamento, reproduzido por gerações, e não se veem saindo desse papel. Na nossa cultura, casamento é sagrado e para sempre.
A psicóloga Mônica Nogueira completa: ela se sente envergonhada porque não quer manter a violência, mas o relacionamento. Terminar representaria o fracasso. É preciso sair dessa idealização, que também coloco na conta da cultura; uma reprodução da cultura machista. Mas, quando se fala em sair do relacionamento abusivo e não voltar, parece algo como ela que lute! Na verdade, é preciso mudança de comportamento dos agressores, da sociedade.
No ciclo do violência, lembra Mônica, ainda tem a fase da lua de mel, que é aquele momento em que o agressor se declara arrependido. Diante da própria vulnerabilidade e falta de suporte, somadas às pressões para restabelecer o relacionamento, muitas mulheres acabam cedendo aos apelos do ex-companheiro.
Quando se tem uma vida conjunta, é muito mais difícil dizer esse não. O término do relacionamento é o maior não que a mulher diz para o agressor, e ela precisa de apoio para fazer isso, sustenta.
Terminar uma relação de abusos não é igual ao final de um relacionamento saudável. É preciso colocar o pé no chão, diz a psicóloga, sair da emoção e entender que está em uma situação de perigo, que precisa buscar ajuda, seja se abrindo com alguém, seja procurando o poder público ou um advogado.
E quem se dispuser a ajudar, talvez tenha que pagar uma passagem para esta mulher sair da cidade, por exemplo, ou recebê-la em casa por um período. Por isso, repito, se não há intervenção, apoio, dificilmente a vítima de violência consegue sair dessa relação. E, importante que se diga: como o término não é de forma amigável, também não é possível ficar mantendo contato com o ex, adverte Mônica Nogueira.
Conceição de Maria Mendes Andrade, superintendente e cofundadora do Instituto Maria da Penha (IMP) - organização voltada ao combate à violência contra a mulher -, acrescenta que as vítimas também precisam de políticas públicas para acabar com os abusos, porque o ciclo não vai se romper por si só.
Às vezes, ela está distanciada da família e amigos, não consegue nem se abrir, ou quando fala, muitas vezes é desacreditada. Isso é muito grave também. Acreditar nos relatos dessa mulher é o primeiro passo para ajudá-la a romper com o ciclo. Também é preciso ter políticas públicas e informá-la sobre a sua existência; acompanhá-la em centros de assistência da mulher; dar apoio efetivo, relaciona.
No Espírito Santo, há 15 unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento a mulheres vítimas da violência. Entre outras medidas, nesses locais pode ser feito o encaminhamento delas para a Casa Abrigo, um espaço de proteção àquelas em risco iminente de morte devido à violência doméstica. O local faz o acolhimento temporário de mulheres e seus filhos de até 14 anos.
Mas, antes que seja necessário chegar a esse momento, a psicóloga Mônica Nogueira ressalta que a mudança tão propagada e necessária só vai acontecer quando a educação de meninas e meninos deixar de perpetuar conceitos de superioridade do homem sobre a mulher.
E, para elas, vai passar um pouco por essa conversa de autoestima, autocuidado, saber que não precisa de outra pessoa para ser feliz. A mulher poder estar bem sozinha não é muito fomentado na sociedade. Até para investir em uma boa relação, se quiser, é preciso estar bem consigo. Porque, quanto mais fragilizada, é quase que uma armadilha para encaixar esse homem que, logo, vai dar sinais de abuso, conclui.
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