A esteticista de 41 anos, que ouviu durante uma audiência que ela precisava "aquietar o facho" e ficar o resto da vida com o ex-companheiro, disse que se sentiu humilhada com a fala do promotor Luiz Antônio de Souza Silva, proferida durante sessão em que ela solicitava pensão alimentícia para os filhos. O promotor foi denunciado pelo Programa de Pesquisa e Extensão Fordan, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), por violência institucional.
O caso aconteceu em uma audiência presencial na Vara de Família de Vitória no dia 20 de março deste ano. Alessandra Souza Silva contou, em entrevista ao repórter Diony Silva, da TV Gazeta, que passou por constrangimento com a postura do promotor.
"Ele falou bem assim: 'Você tem um monte de filho, sossega o facho'. Porque ao sossegar o facho eu sou obrigada a ficar com uma pessoa que eu já larguei. Eu quero uma paz na minha vida. Me senti pra baixo, humilhada. Para ouvir de uma pessoa dessas. A gente vai pra pedir apoio e ser rebaixada, aí não tem como. Constrangimento demais", disse Alessandra.
Segundo a denúncia, um áudio gravado durante a audiência (ouça acima) mostra o promotor fazendo comentários sobre a quantidade de filhos que Alessandra tem.
'A mãe tem quantos? Tem cinco com ele', pergunta o promotor.
'Tenho uma mais velha, de 22 anos e um nenezinho agora', diz a mulher
'O mais velho é com ele é? Gente, agora eu vou falar assim, vocês com cinco filhos juntos, hein, doutora? Cinco filhos juntos. Vocês deveriam aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos, né?', diz o promotor
'Deus me livre, Deus não deixou, o que tinha que dar já deu', comentou a mulher.
A advogada do programa da Ufes, Layla dos Santos Freitas, explica que existe um protocolo adequado a ser seguido na audiência, mas que não foi cumprido.
"Existe um protocolo, que é o protocolo de perspectiva de gênero que foi estabelecido pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Desde o ano passado, era uma recomendação e agora trata-se de um obrigatoriedade. O que isso significa? Significa que todas as varas que tiverem um viés de violência contra a mulher ou de gênero precisa estabelecer limites, entender a mulher, não traumatizá-la novamente e conduzir a audiência de uma forma que isso não aconteça", pontua a advogada.
A mulher morou com o ex-marido durante 20 anos e contou que foi agredida diversas vezes e que tinha medidas protetivas contra ele. Alessandra tem sete filhos, sendo 5 com o ex-companheiro.
A esteticista disse que estranhou o tom a audiência desde o início.
"Parecia uma graça, uma piada. Eu falei: 'eu vim aqui pra resolver um negócio e estou resolvendo outro. Vim pra resolver negócio da pensão e ele quer falar de quantos filhos que eu tenho, do passado meu'. Ele riu, o meu ex-marido também ficou rindo, achando graça. Meu ex-marido falou bem assim: 'mas ela engravidou porque não se previne'. Ele se achou superior, me colocou mais pra baixo ainda, ficar rindo da minha cara", relata Alessandra.
Em outro trecho do áudio, que consta na denúncia, o promotor continua a conversa e segue afirmando sobre a quantidade de filhos.
"Quem tem cinco filhos juntos deveria aquietar o facho. Tá? É isso aí, tá? Vocês... É, porque todo mundo é livre. Mas olha a consequência... Os filhos depois crescem, gente. Os filhos precisam. Então, precisa do ambiente mais... Porque, assim, a questão única não é só o dinheiro. A questão é o emocional dos filhos, é os pais estarem bem", comentou Luiz Antônio.
Alessandra conseguiu a pensão alimentícia para os filhos, mas o sentimento de humilhação continuou, o que a fez buscar a Ufes para fazer a denúncia no dia 9 de maio.
"Eu morei 20 anos com meu marido. O que passei foi ser humilhada, violentada, sofri abuso psicológico. A gente tem que debater com ex-marido, chegar para fazer audiência e lá virar chacota para promotor... Aí a gente sai de lá como lixo, né? Fica humilhada mais ainda. A gente denuncia, a gente vira chacota, e aí o que acontece? A gente fica calada e volta para casa", apontou a mulher na denúncia.
O caso foi enviado para o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) no dia 29 de maio. A reportagem procurou o CNDH, mas não recebeu nenhuma resposta. Já o Conselho Nacional do Ministério Público disse que não recebeu nenhuma representação referente a esse caso.
O promotor Luiz Antônio de Souza Silva disse, por meio de nota, que não vai comentar sobre o caso por se tratar de uma audiência ocorrida em segredo de Justiça. Silva também acrescentou que o aflige pensar que a sua atuação ''possa ter gerado eventual desconforto, certamente advindo de algum ruído de comunicação, que poderia ter esclarecido a respeito, instantaneamente'' (leia a nota na íntegra no final da reportagem).
O Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) informou que não tomou conhecimento dos fatos relatados e não teve acesso ao áudio mencionado. Disse ainda que não recebeu notificação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Para Rosely Silva Pires, coordenadora do Fordan, o que aconteceu na audiência é o retrato de um cenário que mostra o despreparo em lidar com mulheres vítimas de violência.
"O que aconteceu é muito sério. Ela sai da audiência destratada com o promotor. Isso é uma tipificação muito detalhada que o processo de violência psicológica que as nossas mulheres pretas têm passado com essa ausência diante de autoridades que ainda não entenderam a íntegra da Lei Maria da Penha", pontua a coordenadora.
Outro ponto levantado pela coordenadora é o fato de o promotor ressaltar a quantidade de filhos que o casal tem.
"A própria constituição vai trazer a questão do controle e planejamento familiar é direito da família. No caso da mulher, ela não pode sofrer qualquer tipo de coerção por causa dessa questão do planejamento familiar", relatou a coordenadora.
Sobre matéria noticiada em veículo de comunicação, que me tornou ciente de fatos relatados em decorrência de suposta gravação feita em audiência de que participei no exercício de minha atribuição institucional, não posso me manifestar especificamente quanto aos mesmos, publicamente, não exclusivamente por ainda não ter conhecimento do inteiro teor do que consta a respeito nas instâncias aventadas como provocadas no referido periódico, mas, também, em razão de se tratar de ato processual pertinente a ação de família, que, como tal, é revestida do chamado segredo de justiça.
No momento, o que posso transmitir é que, ainda mais enquanto membro do Ministério Público, me aflige bastante a ciência de que a minha atuação possa ter gerado eventual desconforto, certamente advindo de algum ruído de comunicação, que poderia ter esclarecido a respeito, instantaneamente, mesmo porque, seguramente, o possível faria para isso, já que não condiz com a forma como busco desempenhar minhas atribuições institucionais.
Segundo o próprio Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a chamada “vitimização secundária” (ou violência institucional) tem especial gravidade, já que é causada pelos agentes públicos que deveriam proteger a vítima no curso da investigação ou do processo.
De acordo com a Lei nº 14.321/2022, violência institucional ocorre quando o agente público submete uma vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a "procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade, a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”. Os responsáveis pela prática podem ser punidos com detenção de três meses a um ano e multa.
Por ser praticada pelos órgãos oficiais do Estado, a vitimização secundária pode trazer uma sensação de desamparo e frustração ainda maior que a vitimização primária. Se a vítima tiver seus direitos violados ou a dignidade desrespeitada ao buscar amparo e proteção nos órgãos oficiais do Estado, esse fato precisa ser denunciado.
Aprovada em março de 2022, a norma alterou a Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), acrescentando ao texto o artigo 15-A. O dispositivo diz que a pena pode ser aumentada em 2/3 se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização. Se o próprio agente público intimidar a vítima no curso do processo ou investigação, a pena prevista na lei poderá ser aplicada em dobro.
Com informações de Diony Silva, da TV Gazeta, e Viviane Lopes, do g1 ES
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