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Meninas em Cariacica aprendem jiu-jítsu para se defender de abusos

Meninas em Cariacica aprendem jiu-jítsu para se defender de abusos

Aprendendo a lutar, elas ganharam confiança para andar pela comunidade e para pedir ajuda em situações de perigo

Publicado em 14 de outubro de 2023 às 08:49

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Ser mulher é perigoso. O simples ato de andar na rua, pegar um ônibus ou voltar para casa à noite acende o alerta: será que vai ser hoje? O medo é justificado. Quase metade das mulheres brasileiras já relataram ter sofrido assédio, segundo uma pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Um terço diz já ter sofrido violência ou agressão. A sensação de insegurança e impotência limita e restringe o acesso de mulheres aos espaços públicos e privados desde muito jovens.

Em Castelo Branco, Cariacica, periferia da Grande Vitória, um grupo de meninas quer virar o jogo. Em plena sexta-feira à noite, elas trocam o rolê pelo tatame e na quadra do Centro de Referência da Juventude (CRJ) aprendem autodefesa com técnicas de jiu-jítsu.

“A gente pode sofrer abuso de qualquer pessoa, tanto de um parente quanto de alguém de fora. Então, no meu ver, todas as meninas deveriam saber um pouco de defesa pessoal, porque um cara pode te parar na rua ou então alguém pode te puxar para um canto. Tudo deixa a gente exposta a qualquer coisa”, analisa Thais Soares Ferreira, de 17 anos.

Mesmo nem tendo alcançado a maioridade, ela e muitas outras adolescentes sabem bem como é viver sob a iminência de uma violência física ou sexual. Foi o relato delas dentro do CRJ que impulsionou a criação do grupo.

Defesa pessoal
Ana Luiza dos Santos Macedo, 15 anos, e Thais Soares Ferreira, 17 anos, são estudantes e fazem aulas de jiu-jítsu. (Carlos Alberto Silva)

"No território de Cariacica temos um alto índice de violência doméstica, principalmente com adolescentes e jovens mulheres que estão na nossa faixa de atendimento, que é de 15 a 29 anos", aponta Adriana Shepherd, coordenadora-geral do CRJ. Segundo ela, foi justamente por esse motivo que, em agosto de 2022, foi implementada a defesa pessoal para as meninas.

Quando chegou no CRJ, convidada por amigas, Thais fazia aula de dança. Foi um professor que a chamou para experimentar o jiu-jítsu. Mas as turmas eram mistas e ela, inicialmente, não se sentiu confortável de praticar com os meninos. “Eles (os pais) tinham um problema com o fato de ser misturado.”

Mesmo com o pé atrás, e sem apoio da família — que não queria que ela ficasse “se agarrando com meninos” — Thaís começou a praticar e adorou.

Na turma, Thais conheceu Ana Luiza dos Santos, de 15 anos. Ana tinha deixado a capoeira e se apaixonado pelo jiu-jítsu desde que conheceu a modalidade no CRJ. “Dois meses depois que comecei o jiu-jítsu misto, me falaram que estava tendo só para meninas, só para a defesa pessoal”, conta.

Vendo que a adesão da turma feminina estava baixa, e acreditando que poderia usar seu conhecimento para ajudar as colegas, Ana Luiza começou a frequentar as aulas de defesa pessoal. O aprendizado e a convivência com as outras meninas fez aumentar a autoconfiança.

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Se estou na rua e alguém mexe comigo, a minha única defesa antes era xingar a pessoa. Não tem jeito. Agora, estou passando a ignorar porque sei muito bem que, se a pessoa vier, já vou saber me defender. Ela não vai ter maneira nenhuma de fazer nada comigo

Ana Luiza dos Santos
Estudante
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Antes das aulas, o medo impedia que ela saísse de casa depois das 19h. “Era um horário que eu colocava para mim para estar em casa, porque senão eu já achava muito tarde. Foi bem necessário, para mim, aprender isso para tirar um pouco dos meus medos”, conta.

Thais também desenvolveu a autoconfiança e, como ela mesma diz, não ficou mais forte, mas se descobriu mais forte.

“Os meninos pararam de gracinha para o meu lado. Quando o pessoal me vê de quimono na rua já não me olha mais daquele jeito, chamando atenção. Porque as meninas não podem andar nem mais ‘largadinhas’ que os caras ficam paquerando, ficam olhando, ficam analisando na hora saída (da escola). Já não acontece mais tanto comigo. Mudou bastante”, ressalta. 

Ana Luiza e Thais tiveram que operar um trabalho de convencimento nas famílias, que não queriam que elas aprendessem a lutar. Foi na base do diálogo, mostrando os benefícios da prática e as vantagens de saber se defender, que elas conseguiram o apoio, pelo menos parcial, dos familiares.

“Alguns perguntaram se eu estava querendo virar homem porque falavam que é uma parada muito agressiva. Mas eu falei que era uma forma de eu me defender, que nem sempre iam estar comigo ali para poder me ajudar”, reforça Ana Luiza.

Não convencida, a mãe foi pessoalmente inspecionar os treinos e hoje apoia a filha não só na defesa pessoal, mas nos treinos de jiu-jitsu misto, já que Ana Luiza tem a intenção de se tornar atleta.

“As mães costumam prender a filha para aprender essas artes marciais, talvez por achar que pode agredir alguém ou então achar que não vai ser necessário, porque pensem ‘meu filho tá aqui perto de mim’, entendeu? Mas as meninas deveriam aprender tudo que puderem. Porque, querendo ou não, ninguém sabe amanhã o que pode acontecer com a gente”, completa Thais.

O objetivo das aulas não é, de forma alguma, ensinar práticas violentas, e sim dar a oportunidade para que as meninas, quando confrontadas com uma ameaça, possam ter a oportunidade de escapar.

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Não ensinamos a bater, e sim a se defender numa situação de violência, de abuso, ou tentativas que acontecem no território. Ela tem a oportunidade de buscar uma fuga naquele momento de violência

Adriana Shepherd
Coordenadora-geral do CRJ
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Adriana conta que a turma, que começou pequena, com cinco alunas, hoje já triplicou de tamanho. De lá pra cá, é visível a mudança no comportamento das meninas participantes.

"Elas entravam com medo, quando falávamos de violência doméstica, elas recuavam da conversa. Hoje, elas estufam o peito, andam pela comunidade, convidam outras meninas. As falas estão mais politizadas no contexto de buscar ajuda, pedir ajuda", afirma.

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