Toda mulher já sentiu medo de ser estuprada. Seja ao andar em uma rua, ao entrar em um táxi, ao sair para um primeiro encontro ou até mesmo dentro de casa - onde grande parte dos abusos sexuais ocorrem. Esse medo, constante e diário, tem um porquê. Além de enfrentarem assédios no dia a dia, as mulheres representam o gênero que mais sofre com estupros no mundo.
Só no Espírito Santo, pelo menos um caso é registrado por dia, segundo os dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp). Mas esse número pode ser ainda maior, já que muitas vítimas não denunciam o crime por medo ou vergonha.
Ao todo, 210 mulheres denunciaram terem sido estupradas de janeiro a agosto de 2020 no Estado. O número teve uma grande queda durante os primeiros meses de isolamento social - uma das principais medidas para evitar a disseminação do novo coronavírus. Enquanto em fevereiro foram 31 casos, em março foram 27, e em abril o número caiu para 12. Nos meses seguintes, os registros foram voltando a crescer gradualmente até agosto, quando foram registrados 36 casos.
De acordo com a Sesp, 247 casos foram registrados em 2019, de janeiro a agosto, o que representa uma denúncia por dia.
A gerente de proteção à mulher da Secretaria de Segurança (Sesp), delegada Michelle Meira, conta que por medo, ameaças, vergonha ou julgamentos, muitas vítimas não denunciam esse tipo de crime. Essa subnotificação dos casos, inclusive, pode ter sido intensificada nos primeiros meses de isolamento social devido a pandemia do novo coronavírus.
"Ainda não há um estudo comprovando, mas a gente entende que pode, sim, ter havido uma subnotificação, principalmente em casos de violência sexual, que naturalmente acontece muito mais do que é noticiado. Durante a pandemia, não houve a opção de registro de ocorrência online para casos de estupro, pois é um tipo de crime que demanda exames presenciais. Então se já era delicado denunciar em períodos comuns, pelo sentimento de vergonha ou culpa, nesse período isso ficou pior", afirma.
A delegada completa que a grande maioria das vítimas é do sexo feminino. Já os estupradores normalmente são homens e muitas vezes acima de qualquer suspeita, com empregos, família e filhas. Entre os abusos não registrados, Michele Meira destaca os casos de mulheres que são vítimas dos próprios companheiros, que não conseguem identificar que foram estupradas por acreditarem que são obrigadas a ter relação sexual com os parceiros.
Já sobre os casos notificados, a delegada conta que na maioria das vezes a mulher é abusada por homens desconhecidos, que normalmente utilizam algum veículo e afirmam estar armados para render as vítimas. E diferente do que muita gente pensa, os casos não acontecem apenas pela noite ou madrugada, mas em qualquer horário, inclusive pela manhã, quando as pessoas saem para trabalhar.
Para Michele Meira, uma forma de tentar mudar essa realidade é mudando uma cultura através da educação de meninos, para que eles não tornem-se abusadores no futuro.
"A gente ainda cria nossos jovens e crianças em um modelo muito machista, às vezes até sem perceber. Enquanto essa educação não mudar, teremos a reiteração de comportamentos de violência contra o gênero feminino", afirma.
Mas quando já não há tempo de prevenir e o abuso sexual acontece, a delegada orienta que a vítima deve procurar a delegacia para registrar um boletim de ocorrência. Nesses casos, ela faz um alerta: É muito importante que a mulher não tome banho ou troque de roupa, embora esse seja um impulso natural após sofrer a violência. Isso porque serão necessários exames para tentar coletar material do criminoso no corpo e na roupa da vítima.
"O estuprador age achando que nunca vai ser descoberto e se não denunciarem, ele realmente vai sair impune e continuará em circulação, fazendo outras vítimas. Sabemos que a sociedade ainda julga muito a vítima, a roupa que ela estava vestindo ou lugar onde ela estava frequentando. Mas é importante que as mulheres entendam que a culpa nunca é delas", disse.
Entre os abusos sexuais contra mulheres que mais chocaram o Espírito Santo e até mesmo a delegada Michelle Meira estão os estupros em série que ocorreram na Grande Vitória entre 2018 e 2019. Glaupiherle Grasihelo Rocha, 36 anos, é suspeito de violentar pelo menos 13 vítimas.
A reportagem de A Gazeta conversou com uma das vítimas do acusado. Segundo ela, que por segurança não será identificada, Glaupiherle teria começado a agir em série, atacando mulheres em situação de rua, em 2018. Na época, ele agia com um Camaro amarelo, que ficou conhecido na região de Cariacica devido os relatos de ataques violentos. Depois, o agressor teria mudado de veículo e a forma de agir, passando a usar uma picape branca e estuprado garotas de programa que ele encontrava através de anúncios.
Ele me abordou na rua, na BR 262, me pedindo informação e dizendo que era do Rio de Janeiro. Era por volta 21h30 de um domingo, segundo turno das eleições para presidente, lembro bem. Ele estava em um Camaro amarelo e bem vestido. Quando fui para perto do vidro, para orientar como ele chegaria na Rodovia do Contorno, ele apontou uma arma pra mim e disse: "Não corre! Entra no carro se não eu atiro". Com medo, eu entrei. Aí ele começou a me questionar sobre uma mulher que teria roubado ele. Respondi que não sabia de nada. Aí ele falou que eu teria que provar e para isso, tinha que fazer tudo que ele mandasse. Foi quando os abusos começaram e eu entendi que aquela era uma história fantasiosa que ele inventou para justificar a violência.
Começou no carro. Até o momento que consegui enxergar, ele me levou em direção à Rodovia do Contorno. Rodou comigo por uns 40 minutos e depois me levou para um imóvel.
Ouvi o barulho do cadeado, do portão, e depois ele me tirou do porta-malas, me mandando ficar de cabeça abaixada. Disse que havia várias pessoas na casa, mas não tinha som de outras pessoas. Dentro do imóvel, ele me estuprou e me torturou das piores formas. Eu nunca senti tanta dor na minha vida.
Eu fiquei no poder dele por umas duas horas.
Ele me colocou de volta no carro, botou R$ 20 na minha bolsa e disse que era para eu voltar pra casa. Quando chegamos na praça de Jardim América, em Cariacica, ele tirou minha venda e eu fui embora. Mesmo com a visão ofuscada, eu conseguiu ver e gravar a placa do carro. Um rapaz da rua, que já me conhecia, me ajudou. Me limpei do sangue e, nesse primeiro momento, não chamei a polícia. Achei que minha denúncia não daria em nada.
Eu fui parar na rua por uma fraqueza das drogas. Mas antes disso eu tinha uma vida normal, trabalha... Eu estudei pouco, mas sempre gostei de ler jornais, estar atualizada. Então comecei a pesquisar sobre o assunto por conta própria. Também contei para todas as pessoas que estavam por perto. Como forma de proteção e também como alerta pra quem estava na rua. Recebi muito apoio, isso me deu força. Fui colocando no meu pensamento que eu não tinha feito nada de errado e que o problema estava com ele, que ele era o único culpado. Numa dessas, eu estava contando a história em um churrasco e a prima da minha amiga falou que era vizinha de um homem com as mesmas características, que tinha um Camaro amarelo. Ela me mostrou o perfil no Facebook e eu não tinha dúvidas que era ele. Jamais ia esquecer o rosto dele. Descobri que tínhamos vários amigos em comum.
Sim. Ele acreditava tanto na impunidade que até postava foto com o carro que praticava os abusos. Depois, descobri que o lugar que ele me levou era galpão da empresa dele. Quando vi a foto do portão, durante a prisão dele, reconheci o lugar na hora. Mas antes dele ser preso, eu consegui reunir várias informações sobre ele para levar para a polícia. Porque aí ninguém ia poder duvidar de mim. Mas ainda assim demorei para ir porque muita gente dizia que não daria nada.
Depois de saber que ele estava atrás de mim. No início, eu achei que ia enlouquecer. Andava com uma faca na mão, dentro da bolsa. Fui na delegacia e com o tempo fui esquecendo. Falar com as pessoas e denunciar me ajudou nesse processo. Tive muito apoio dos amigos, fiz tratamento psicológico, mas alívio mesmo eu só tive quando vi a cara dele estampada na TV, no dia da prisão.
Sim. Logo depois disso eu me libertei crack e já tem uns dois anos que tenho uma nova vida, ao lado dos meus filhos e do meu atual marido. Acompanho o processo de longe, com muito medo que ele seja solto. Eu e as outras vítimas sabemos o que ele é capaz, ele não pode viver em sociedade. Um homem, aparentemente acima de qualquer suspeita, empresário, visto por muitas pessoas como um cara bonito, bem arrumado, que poderia ficar com qualquer mulher... É nessas horas que a gente vê que estupro não é sexo, é violência. O prazer do estuprador é, nitidamente, fazer com que as mulheres sofram. Meu caso mostrou muito bem isso. E mostrou também que estuprador não tem cara. Pode ser qualquer um.
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