Dia 21 de agosto de 2015. A assistente social Théya Marcolino, hoje com 39 anos, teve um pressentimento ruim. Com calafrios e dificuldades para dormir, ela conta que sentiu a morte. Foi quando, por volta das 3h da madrugada, decidiu ajoelhar e orar. Nesse momento, ouviu um barulho na sala, foi até o cômodo e encontrou o ex-namorado entrando pela janela. Sem aceitar o fim da relação, Rafael Corte de Souza invadiu o apartamento do terceiro andar, no Centro de Vitória, por um andaime de obra, com uma faca na mão. Os minutos seguintes foram de uma incansável luta pela sobrevivência.
Mas a tentativa de feminicídio com golpes de faca foi apenas a última das inúmeras violências domésticas que Théya passou durante nove meses de namoro, sendo cinco deles de forma forçada. Hoje, cinco anos depois, ela conta como reconstruiu a vida longe de Vitória e usa a própria história para alertar sobre os ciclos da violência contra a mulher.
A assistente social conta que aos 34 anos de idade trabalhava como vendedora dentro de um supermercado perto de casa, em Serra Dourada 2, na Serra. Nesse período, em setembro de 2014, ela conheceu um novo funcionário, de 25 anos, que atuava na área do açougue. Aparentemente tranquilo, o rapaz passou a chamar atenção no ambiente de trabalho pela forma gentil com que tratava a todos. Durante uma excursão da empresa, os dois começaram a ficar juntos.
"Ele parecia um príncipe, educado, carinhoso, do tipo que puxava a cadeira para eu sentar, era um homem que quase toda mulher sonha. Por quatro meses, eu vivi uma vida que nunca tinha vivido antes, perfeita. Mas sem eu perceber, ele foi me afastando da família e dos amigos. Se eu falava que ia comer uma pizza com as amigas, ele dizia que naquele dia tinha planejado um jantar especial pra mim, aí eu desmarcava com elas. Era sempre assim: se eu queria fazer algo com amigos ou familiares, ele me oferecia outra coisa, fazia uma surpresa. Quando percebi, eu já não tinha mais a minha vida. Aí ele mostrou a verdadeira face dele", lembra.
Théya conta que o namorado não saía mais da casa dela e logo providenciou uma chave do imóvel. Depois, instalou uma placa de zinco para evitar que outras pessoas vissem o interior da residência da namorada. Na ocasião, Rafael argumentou que era para ela ter mais privacidade. Mas a violência ficou realmente visível o dia que ela saiu no horário de almoço para ir ao banco com a mãe.
"Mandei uma mensagem avisando que não almoçaria com ele e fui ao banco. Quando encontrei minha mãe, ela falou que eu estava afastada, que sumi até das redes sociais e só aparecia para escrever enormes declarações de amor. Achei estranho, porque eu nunca havia escrito nada assim. Foi quando descobri que ele estava controlando minhas redes, fingindo ser eu. Voltei para casa, sem olhar meu celular. Quando cheguei, ele estava furioso, com um papel na mão, onde havia desenhado o meu percurso, contabilizando a hora que mandei a mensagem até a hora que cheguei e disse que eu estava mentindo. Ele perguntava: onde você estava? Está pensando que eu sou quem?", lembra.
Ao ver a reação descontrolada, a assistente social disse que não tinha como a relação de quatro meses continuar, pois estava se sentindo oprimida. Foi quando o açougueiro foi embora. No dia seguinte, começaram as intimidações dentro do ambiente de trabalho. Mas sem conseguir controlar a ex dentro do estabelecimento devido a carga-horária no açougue, Rafael pediu demissão e começou a trabalhar em um emprego informal. Dessa forma, tinha tempo livre para ir ao supermercado vigiar a ex, inclusive escondido atrás de árvores e postes.
"Após duas semanas, ele me abordou no portão de casa, pegou meu rosto, apertou e disse: 'está pensando que vai sair fora de mim assim fácil?' Ele me levantou com as mãos, pelo pescoço, e com o olho cheio de ódio me disse que ou eu voltava para ele ou o pior poderia acontecer. Uma vizinha viu tudo. Com medo, eu pedi para conversarmos. A partir dali, eu fiquei nas mãos dele, ele me controlava em tudo. Ninguém entendeu porque voltei para ele. Mas eu nunca senti tanto medo de um homem como senti dele. Não contei para ninguém sobre as ameaças. Tinha muita vergonha e o meu medo foi maior que a minha coragem", diz.
Durante esse tempo, Théya conta que o agressor queria que a relação fosse romântica, como no início do namoro. Para isso, ele a obrigava ser carinhosa e dizer que o amava, sob ameaças de morte. Logo, Rafael mostrou outras inconstâncias, passando a desaparecer por dias. Antes de sair, levava o celular e os documentos da vítima, dizendo que ela estava proibida de sair ou falar sobre ele com alguém. Caso contrário, ele saberia. Mas em um desses desaparecimentos, a assistente social tomou coragem e pediu socorro para uma vizinha, que chamou a polícia. O que ela não esperava era que os policiais iriam desencorajá-la a denunciar.
"Ele saía com meu celular e respondia minhas amigas fingindo ser eu. Minha vizinha me encorajou a chamar a polícia e quando contei aos PMs, um deles, de forma bem autoritária, me perguntou: 'ele está te machucando?' Eu respondi que não, mas que estava me coagindo. Aí ele disse: 'e você fez deslocar uma viatura até aqui pra isso? Se o cara trata mal, reclama, se trata bem, reclama também'. Fiquei paralisada. A viatura foi embora e minha vizinha falou que eu tinha que fugir. Mas como? E meu emprego? Minha vida? Meus documentos? Toda vez que ele saía, eu desabafava com essa vizinha, que era a única que sabia de tudo. Com o tempo, ela foi ficando muito abalada, tendo crises de pânico só de me ver. Foi quando decidi me afastar para não prejudicá-la", lembra.
Em uma ocasião, o agressor estava passando uns dias na chácara da família dele. Foi quando Théya contou tudo para o gerente do trabalho dela, que a aconselhou ir na chácara com alguém levar as coisas do namorado, pegar os documentos e dar fim na relação. Porém, a vítima foi ao endereço sozinha. Ao encontrar o irmão do açougueiro na porta do imóvel, ela pediu que ele pegasse os documentos dela com o agressor. Mas o rapaz pediu para que ela mesma fizesse isso. Foi quando a assistente social entrou e flagrou Rafael usando crack. A partir desse momento, ela foi espancada por quase uma hora.
"Ele jogou em mim a latinha que usava a droga e me bateu muito. O irmão dele tentou intervir, mas levou um golpe de madeira e caiu. Ele foi me arrastando até o quintal, onde consegui correr pra rua. Estava vindo um ônibus e ele me jogou na frente do veículo. O motorista freou em cima de mim. Eu quase morri (choro). Um homem começou a gritar para ele me largar, ele partiu pra cima do homem também. Fui espancada por cerca de 40 minutos e ninguém fez nada, as pessoas ficavam com medo. Ele me levou da chácara até minha casa, com todos me olhando pela rua, me jogou no chuveiro e rasgou minhas roupas com uma faca. Eu estava toda machucada, sangrando muito. Depois me trancou no quarto e voltou para rua. Perdi dias de trabalho", lembra.
Nesses dias, a vítima ficou em cárcere privado. A vizinha dela, que sabia de tudo, chegou a chamá-la no portão. Mas o agressor apagava todas as luzes e a impedia de respondê-la. Depois, um homem a gritou também. Théya acredita que era um policial. Mas sem poder responder, ouviu a moradora ao lado falar que acreditava não ter ninguém em casa, pois a residência estava escura há três dias. O açougueiro usava apenas a lanterna do celular dentro do local e dava mingau na boca da vítima, que estava com a língua muito ferida devido o espancamento. Enquanto isso, dizia que se ela se "comportasse", ele voltaria a ser o "príncipe" que ela conheceu. Foram semanas de recuperação, até que ela pudesse voltar para a rotina de trabalho.
"Ouvi muitas piadinhas quando voltei a trabalhar. As pessoas zombavam por eu ter apanhado e continuado com ele, mas ninguém sabia o que eu passava. Eu tinha medo e vergonha. Meu brilho acabou, ficava sempre sozinha. A minha vizinha me deu a ideia de internar ele e fugir. De início, ele não aceitou. Alucinava dizendo que tinha homem debaixo da minha cama, que eu estava marcando encontros, sendo que eu nem tinha mais celular. Nessa época, ele tatuou meu nome bem grande no peito dele, com os dizeres: amor eterno, dizendo que só a morte nos separaria. Passei o réveillon de 2014 para 2015 trancada com ele e pensando 'esse ano eu vou morrer'. Um dia eu pedi pelo amor de Deus para ele me deixar. Ele me espancou, quebrou meu celular, me trancou e saiu de casa".
Mais uma vez em cárcere, Théya conseguiu ter coragem de pedir ajuda. Temendo ser morta, ela bateu na porta e gritou por socorro até ser ouvida pelos vizinhos, que conseguiram arrombar a residência e salvar a vítima. A vizinha dela chamou um táxi para que a assistente social fosse para a delegacia. Com marcas do espancamento, ela acreditava que, na segunda tentativa de pedir ajuda, seria acolhida pela polícia. Porém, ela afirma que o tratamento recebido por uma policial, na época, foi agressivo e frio. Sozinha e machucada, ela foi orientada a ir por conta própria no Departamento Médico Legal (DML) fazer exames de corpo de delito. Depois, retornou para a delegacia, onde conseguiu uma medida protetiva.
"Saí de lá com o papel na mão, mas não adiantou, ele voltou para a minha casa sob ameaças. Cerca de 30 dias depois foram na minha casa entregar a medida para ele. Ele respondeu que poderiam rasgar aquilo porque já estávamos juntos e felizes. Eu respondi que não estava feliz não. Aí o homem que entregou a medida falou: 'mas você está com uma aparência tão boa'. Era um julgamento atrás do outro, até de quem deveria me proteger. Cheguei a pensar que eu nunca iria conseguir ajuda de ninguém. Que não ia me livrar dele nunca. Até que vi uma reportagem na TV sobre um projeto social para recuperação de dependentes químicos. Foi quando lembrei da ideia que minha amiga deu de interná-lo e fugir. Pensei: essa é a única forma de conseguir sair dessa".
A assistente social pediu mais uma vez ajuda da vizinha, que conseguiu um celular velho para a amiga ter comunicação em caso de emergências. Juntas, elas planejaram a fuga de Théya, que pediu férias no trabalho para que o plano desse certo. Com o celular que ganhou, durante o horário de trabalho, ela ligou para o projeto social e contou sobre o namorado dependente químico, passando os dados dele, sem avisar sobre as agressões físicas e o plano de fugir. Depois, veio a parte mais difícil: convencer o agressor de que ele precisava de ajuda. Para isso, ela pediu apoio de uma tia dele, que localizou pelas redes sociais.
"Contei tudo para a tia dele, que ficou apavorada. Pedi ajuda no meu plano e ela me apoiou: falou com a mãe dela, que é avó dele, e as duas foram para minha casa dois dias depois. Ele não estava, então mostrei para elas todas as minhas cicatrizes. Elas ligaram pra o meu ex, ele foi pra casa e acabou convencido a se internar. Elas disseram que cuidariam de mim enquanto ele estivesse fora e iríamos visitá-lo. No dia da internação, em abril de 2015, o levamos no Centro de Vitória, onde a van o buscaria. Ele quase desistiu, falando que eu ia ficar com outro. Foi quando a tia e a psicóloga do projeto falaram que não, que eu gostava muito dele. A van foi embora, eu ajoelhei no Centro da cidade e chorei comemorando a minha liberdade", lembra.
Théya mudou de município e passou a morar em um prédio no Centro de Vitória. Depois, pediu demissão do mercado para que o ex não a localizasse mais. Mas a liberdade durou apenas cerca de 30 dias. No final de maio de 2015, o pastor do projeto social onde o ex estava internado pediu para que ela fosse na clínica assinar alguns documentos. A assistente social perguntou se era obrigada a ir e teria recebido a resposta que era bom ela comparecer porque era a responsável por aquela internação. Théya não queria, mas foi convencida pelo pastor - que a garantiu que o ex nem a veria lá. Mas ele a viu e quando ela foi embora, foi abordada dentro de um terminal de ônibus por Rafael, que disse: "está pensando que vai fugir de mim? Nós vamos embora juntos".
"Vivi mais 30 dias com ele na minha casa. Ele me fazia assistir o filme Romeu e Julieta várias vezes ao dia e falava: 'está vendo? Assim que a gente vai terminar'. Ele lia a bíblia e me torturava verbalmente, ao ponto de eu pedir a morte para Deus, porque eu não aguentava mais. Eu não conseguia dormir, passei a ter ainda mais medo. No prédio que eu morava, ainda não conhecia os vizinhos. E a vizinha do endereço antigo mudou de Estado com o marido devido à crise de pânico que ela teve após tentar me ajudar. Foi quando, um dia, o enfrentei e falei que eu ia embora, porque não queria morrer. Aí ele disse que eu não precisava sair, que ele ia embora. Mas antes, me humilhou. Disse que eu era um lixo humano, deprimente e feia. Eu nem liguei, só queria que ele saísse".
Rafael colocou todas as roupas e objetos pessoais em uma mochila, abriu a porta da casa e deixou a bolsa no corredor. Mas antes de sair, foi na cozinha, pegou uma garrafa de álcool e tacou o líquido inflamável na vítima. Como a porta estava aberta, ela conseguiu correr. Mas o ex a puxou pelos cabelos, que estavam encharcados de álcool, e disse: "achou que eu ia embora e deixar você viva?". Ele tentou atear fogo na vítima, que lutou até que o isqueiro caísse. Quando o agressor tentou pegar o objeto no chão, ela aproveitou para correr. Théya conta que encontrou uma viatura da Polícia Militar na rua, pediu ajuda, mas os policiais teriam dito que ela deveria procurar a delegacia da mulher.
"Eu estava desesperada e molhada de álcool, até que um casal me ajudou. Eles foram comigo até a minha casa e meu ex não estava mais lá. Eles me orientaram a dormir em outro lugar e deixaram o número de telefone deles comigo. Foi quando uma vizinha, que eu não conhecia, saiu e perguntou o que estava acontecendo. Dei um abraço forte nela e contei tudo. Ligamos para a delegacia e a policial que me atendeu falou de forma grosseira, dizendo que se eu continuasse acelerada ela não ia poder fazer nada. Depois falou: 'você já tem uma medida protetiva, se ele aparecer você chama a polícia'. Foi quando eu desisti de pedir ajuda para as autoridades policiais. Eu dei um dinheiro para minha vizinha, porque estava com medo de sair e ela comprou um celular para mim".
Mas mesmo longe do agressor, ela não se sentia livre. Com medo, não saía de casa e dependia da colega do prédio até para buscar um lanche na portaria. Em uma noite, o ex tentou entrar na residência. Mas já ciente do caso, a vizinha da vítima abriu a porta, o abordou e ele foi embora. O síndico do prédio em que Théya morava trocou todas as fechaduras do local. Porém, Rafael continuou rondando a região, inclusive enviando mensagens para ela, afirmando que estava a vigiando. Com medo, a assistente social passou a procurar outro lugar para morar. Ela conseguiu um novo imóvel e já estava com a mudança marcada. Mas dias antes, em 21 de agosto de 2015, ela teve uma sensação que define como "sentir a morte".
"Naquele dia eu me senti muito mal, não conseguia respirar, tinha calafrios. Eu senti a morte. Até chamei minha vizinha achando que estava com febre, mas ela disse que não, falou que eu estava gelada. Por volta das 23 horas ela foi para a casa dela. Mas eu não consegui dormir. Foi quando, por volta das 3 horas da manhã, eu ajoelhei e comecei a orar. Pedi para Deus me proteger. Aí eu ouvi um barulho de vidro quebrando na sala. Fui até o cômodo e o vi, em pé, com uma touca. Ele tirou a touca e me deu a primeira facada no pescoço, dizendo: 'era tão simples dizer que em amava e voltar pra mim'. Ele continuou me esfaqueando no rosto e na cabeça. Eu senti como se o meu rosto estivesse quebrando, vi o meu sangue escorrendo e voando na cara dele", conta.
Théya lutou para sobreviver e a casa, segundo ela, ficou lavada em sangue. O agressor a arrastou em direção a janela quebrada da sala, tentando jogá-la do terceiro andar. Mas ela conseguiu se desvencilhar e correu para o corredor do prédio, batendo em todas as portas enquanto implorava por ajuda. Rafael foi logo atrás e a empurrou em um fosso de cerca de quatro metros que havia ao lado da escada. Ela conta que caiu no andar de baixo e, mesmo ferida, conseguiu ir até o portão. Mas ao chegar, o portão estava bloqueado por um colchão ortopédico. O obstáculo havia sido colocado no local pelo próprio agressor assim que entrou no prédio.
"Até hoje eu não sei como eu consegui correr porque eu estava muito machucada (choro). Bati em todas as portas e ninguém abriu. Quando vi o portão bloqueado por um colchão pesado, eu pensei que não tinha mais jeito. Eu gritava enquanto o via vindo na minha direção todo sujo de sangue. Quando ele chegou perto, me levantou pelo pescoço e falou: para de sofrer e morre logo que eu quero terminar isso pra ficamos juntos'. Eu pedia pra ele não fazer nenhuma besteira, pra pensar na filha dele. Ele dizia que amava mais a mim do que a própria filha. Me ajoelhei e implorei pra me deixar viva. Ele respondeu, enquanto limpava meu sangue no rosto dele: 'eu te falei que era pra você ficar comigo'. Foi quando me deu uma facada profunda em cima do ombro e eu perdi as forças".
Já com a vítima caída, o criminoso deu a quinta facada nas costas dela, enquanto dizia: 'você é ruim de morrer'. Nesse momento, veio na mente da assistente social a ideia de que ela deveria fingir-se de morta. Pensando que a ex realmente estava morta, Rafael fez carinho nela, deu um beijo e disse: 'agora acabou, ninguém vai separar a gente e vamos ficar juntos para sempre'. Depois, cortou os próprios pulsos e caiu ao lado da vítima. Nesse momento, ela conta que sentiu uma força, levantou e subiu as escadas correndo. A vizinha da vítima, que a ajudava nas últimas semanas, abriu a porta e a acolheu. A colega já havia acionado a polícia quando ouviu a violência. Enquanto aguardavam a viatura, o agressor levantou, voltou para o apartamento da ex e deitou na cama dela.
"Quando os policiais chegaram, a policial feminina falava que eu tinha que ir para o hospital, pois estava morrendo. Já o policial masculino dizia: 'eu sei, mas antes temos que ver quem está na cama dela, se é mesmo o ex ou outro cara que ela está dormindo'. Foi quando minha vizinha interveio e falou que não tinha outro cara, que eu era sozinha e sofria violência. Aí o policial me mostrou o agressor e perguntou: 'ele é seu ex? Se sim, aperta minha mão'. Eu apertei. Depois ele pediu para que eu falasse o nome dele bem devagar. Aí minha vizinha interrompeu e falou que ela tinha todos os dados, pois eu já havia deixado com ela. Me levaram para o hospital e ele foi preso em flagrante", lembra.
A vítima ficou dez dias internada e depois passou mais dez dias recuperando-se na casa de um irmão. Mesmo ferida, ela conta que foi julgada por ter vivido uma relação abusiva. A família, inclusive, chegou a pedir que ela arrumasse outro lugar para morar, longe da casa deles, pois temiam represálias. Sem pedir ajuda psicológica logo de início, ela sofreu com crises de pânico. Apenas após um ano e meio, conseguiu apoio. Em um momento de desespero, a vítima conta que foi para a orla de Santo Antônio, onde a família vive, disposta a tirar a própria vida. No local, reencontrou um antigo vizinho, que também passava por uma situação difícil após perder a esposa. O colega a ajudou não apenas esquecer a ideia de suicídio, como a encorajou a pedir apoio psicológico.
"Ele compartilhou a história de dor que também carregava e criamos um vínculo. Ele me pediu para que toda vez que eu sentisse vontade de morrer, ligasse pra ele. Começamos a nos ver todo dia após o trabalho, ele me chamava para jantar, e eu tinha medo dessa amizade, pois a última pessoa que me ajudou, a vizinha que me socorreu quando fui esfaqueada, também teve crise de pânico e mudou de Estado. Eu achava que a culpa era minha, que eu fazia mal para as pessoas. Foi quando comecei a sentir fobia, via lâminas passando na minha frente, tinha medo dos seres humanos, entrava em pânico em lugares públicos. Precisei me afastar do novo trabalho e iniciei um tratamento. Tudo graças ao meu vizinho que me ajudou. Só então eu entendi que não era culpada".
Théya explica que demorou para buscar ajuda psicológica por vergonha de contar tudo que tinha acontecido, devido os vários julgamento que sofreu nas vezes que tentou pedir socorro. Mas ela conta que isso não é o recomendável, pois adoeceu. Após começar o tratamento, a assistente social voltou a reconstruir a vida. Durante esse tempo, ela e o vizinho, que a ajudava, começaram a namorar. Apesar da dificuldade em entrar em outra relação, por conta dos traumas, o companheiro foi a pessoa que mais a ajudou nesse momento. Porém, há cerca de um ano, as crises de pânico retornaram e o casal decidiu mudar-se para o interior de outro Estado recomeçar a vida.
"Tentei fingir que nada tinha acontecido e fui consumida pela culpa. O depois é ainda pior. Ouvi muita gente falando que ninguém toma facada a toa. É por isso que as mulheres não denunciam. Até minha família falava que eu só arrumava homem errado e que passei por tudo aquilo porque quis. Os amigos sumiram. É uma luta diária para superar. Ainda estou me adaptando a morar no interior. O tratamento psicológico e o apoio do meu marido me deram força. Hoje, vivo um dia de cada vez, tento ajudar outras mulheres, não deixo o medo, vergonha ou culpa dominarem minha mente. Entendo que por mais que a gente esteja bem em uma relação, temos que nos amar em primeiro lugar sempre. Além disso, hoje eu já fico mais alerta aos sinais do abuso".
Rafael foi a júri popular em julho de 2018, sendo condenado a 17 anos e 6 meses de prisão. A vítima, que atualmente participa de projetos para dar apoio à vítimas de violência doméstica, conta que até mesmo no dia da audiência o ex a ameaçou, dizendo que ele poderia ficar anos preso, mas voltaria para matá-la. Théya conta que, mesmo em outro Estado, recomeçando, às vezes ainda sente medo. O local onde a assistente social vive atualmente não foi divulgado nessa matéria por questão de segurança.
Na sentença, o juiz Marcos Pereira Sanches alegou que Rafael demonstrou "grande desapego à vida humana" e promoveu à vítima uma "verdadeira noite de terror". Ele completou que o réu planejou e premeditou do delito, "inclusive com a colocação de obstáculo (colchão) junto a uma porta da moradia para evitar a fuga da vítima".
Rafael, hoje com 30 anos, permanece preso na Penitenciária Estadual de Vila Velha 2, respondendo por tentativa de homicídio tripamente qualificado por feminicídio, meio cruel e impossibilidade de defesa da vítima. Na sentença de pena, o magistrado informou que o caso teve "circunstância atenuante da confissão" - ou seja, o réu teve o direito público da pena reduzida por confessar espontaneamente o envolvimento no crime.
A reportagem procurou a Defensoria Pública do Espírito Santo, que defendeu o acusado, para ouvir o outro lado. Por nota, a Defensoria afirmou que não se manifesta sobre processos em andamento em respeito à privacidade dos envolvidos. "No caso concreto, a Instituição promoveu a defesa técnica, que é direito de todo cidadão. Isso porque a Defensoria Pública existe exatamente para garantir acesso integral à justiça, sem distinção", disse a nota.
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