A cada três dias, uma mulher é assassinada no Espírito Santo. A cada três assassinatos, um é classificado como feminicídio, isto é, crime motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero. Os dados, referentes a todo ano de 2021, demonstram que ser mulher no Estado é estar permanentemente vulnerável.
De janeiro a dezembro do ano passado, 106 mulheres foram mortas, entre as quais 38 estão no grupo de vítimas de feminicídio. Em todos os meses, houve pelo menos um caso em que a simples condição feminina levou ao assassinato.
Diferentemente dos chamados crimes comuns, o feminicídio, observa Renata Bravo, tem circunstâncias muito específicas, pois são praticados por pessoas conhecidas, dentro ou fora de casa. Assim, as mulheres não se sentem seguras em nenhum lugar.
E é por isso que essas mortes não se resumem a números. Por trás dos dados estão Karina, Manu, Edilaine e mais dezenas de outras mulheres que foram atacadas por quem, em algum momento, lhes prometeu amor e cuidado. Elas, contudo, encontraram maus-tratos e morte. Os assassinos calaram vozes, interromperam sonhos, deixaram órfãos crianças e adolescentes.
Para os filhos de Edilaine, de 5 e 2 anos, não bastava a tragédia de perder a mãe esfaqueada pelo marido: presas com ela em um carro, as crianças presenciaram o assassinato.
Manu, por sua vez, mal havia deixado a adolescência e também se tornou vítima do sentimento de posse, predominante nos casos de violência doméstica e feminicídio. Aos 18 anos, ela foi morta pelo ex-namorado, dois dias após terminarem o relacionamento.
Diante das brigas constantes e do ciúme excessivo, a mãe de Manu já havia alertado a filha para o risco, mas a jovem não acreditava que o namorado teria “coragem” de atacá-la.
Muitas mulheres vivenciam relações tóxicas e podem ter dificuldade em reconhecer o problema. Mas isso não faz das vítimas culpadas por sua própria tragédia. São conceitos de uma sociedade machista que colocam o homem numa condição de superioridade e encobrem os abusos cotidianos.
O ciclo da violência é dividido em fases - aumento da tensão, atos violentos e lua de mel - e, caso não seja interrompido, o resultado pode ser o feminicídio, segundo aponta o Instituto Maria da Penha - organização que, entre outras atividades, atua no combate à violência contra a mulher.
Muitas vezes a dificuldade de se desvencilhar de um relacionamento abusivo, que pode levar à morte, também passa pela dependência econômica. Karina percebeu que o caminho para a sua liberdade seria a autonomia financeira e começou a trabalhar para criar a filha de um ano - agora também órfã. Contudo, o ex não aceitava a separação e, acabou com os planos da jovem de viver longe dele, matando Karina e a mãe dela.
Para Renata Bravo, o enfrentamento cabe ao Estado - nas esferas federal, estadual e municipal - mas também é necessário que a sociedade dê um basta definitivo a esse contexto em que o homem se sente “autorizado” a matar.
Ela constata que muitas vezes a mobilização social ocorre em casos mais emblemáticos, como o da médica Milena Gottardi, ou de pessoas próximas às vítimas, porém ainda não se mostra suficiente para promover mudanças culturais ou maior investimento em políticas públicas de prevenção à violência doméstica e de gênero.
“A verdade é que há um certo entorpecimento, especialmente nesses dois últimos anos de tantas vidas perdidas em razão da pandemia. Parece que as pessoas estão lutando o tempo inteiro por tanta coisa - é gente morrendo de fome, de Covid, jovens negros por serem jovens negros, mulheres por serem mulheres. São tantas coisas por que lutar e parece que ninguém está mais dando conta”, analisa.
A delegada Michele Meira, da Gerência de Proteção à Mulher da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), reconhece o número elevado de feminicídios, mas argumenta que, na série histórica, o Espírito Santo vem apresentando uma redução contínua das mortes de mulheres. O Estado já liderou esse ranking, mas, no último Atlas da Violência, figurava em 11º lugar.
Michele Meira avalia que a pandemia teve impacto nos indicadores. Primeiro, em 2020, com uma redução bastante acentuada que, em sua opinião, foi reflexo de uma certa "paralisação" de tudo porque as pessoas foram obrigadas a permanecer em casa. Mesmo nesse convívio familiar mais intenso, a delegada considera que os problemas conjugais não foram potencializados. Já em 2021, quando aumentou a circulação de pessoas nas ruas, a violência doméstica voltou a patamares pré-pandêmicos.
"Esse é um problema que está arraigado na sociedade, mas, se olharmos a série histórica, estamos num caminho para a redução. Mas, claro, há muito trabalho ainda para fazer, que não passa só pela segurança pública, mas também pela educação", sustenta.
Renata Bravo também aponta a necessidade de mais investimentos nas políticas públicas, e destaca o trabalho da Polícia Civil no "Homem que é Homem", projeto voltado a agressores com inquéritos em andamento em Delegacia da Mulher. A iniciativa promove encontros reflexivos sobre relações de gênero, desconstrução de ideias sexistas e machistas, e estímulo a formas pacíficas de lidar com conflitos, entre outros temas que visam conscientizar o homem sobre a cultura de respeito e não violência.
"Eles têm que ser chamados à responsabilidade para que parem de ser agressores e de matar mulheres. Só prender não vai resolver. A punição com prisão é necessária, para não haver sensação de impunidade, mas a prevenção é fundamental e esse reflexão é um caminho para mudar essa cultura da violência contra a mulher", pondera a especialista.
A delegada acrescenta que, além desse projeto, o Estado tem investido em outras ações para proteção das mulheres, como a Patrulha Maria da Penha, com visita da PM à casa de mulheres que têm medida protetiva contra agressores, ou o aplicativo SOS Marias, lançado no ano passado, em que o acionamento de apoio policial é feito pelo aplicativo com um toque no celular.
Neste terça-feira (8), o governo do Estado também lançou uma ferramenta para monitoramento eletrônico de homens acusados de violência doméstica.
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