Medida vai criar cenário de escravidão
Manoela Soares é advogada especialista em Direito Penal e Processo Penal
Há muitos motivos para discordamos do projeto de lei nº. 580/2015, já aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Essa proposta, que obrigaria o preso a ressarcir, mediante recursos próprios ou labor, todas as despesas suportadas pelo Estado durante o período de encarceramento, ameaça nos aproximar de um cenário de escravidão, além de ignorar formas alternativas de pena.
Através da medida supramencionada, o autor do projeto argumenta que sobrará mais recursos para serem aplicados na saúde, educação e infraestrutura do país. Observando os números, realmente devemos ficar alarmados: o Brasil concentra mais de 726 mil pessoas presas, perdendo apenas para os EUA (2,14 milhões) e China (1,6 milhão), de acordo com o World Prison Brief. Ao contrário desses dois países, todavia, o Brasil está aumentando tal quantitativo, conforme relatório Justiça em Números 2018, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, indicando que duas, em cada três das execuções penais iniciadas no ano de 2017, consistiram em privação de liberdade, relegando ao esquecimento alternativas de pena com menor custo para o Estado.
Nesse cenário, com a devida vênia, acreditamos que a ideia ventilada no projeto de lei nº. 580 de 2015 não reduzirá a criminalidade, tampouco desonerará o Estado. A conclusão não é difícil de ser alcançada e se baseia nas sinceras (e notórias) dificuldades que o egresso do sistema carcerário enfrenta para se reinserir. Há preconceito social e as vagas de trabalho tornam-se escassas, pela falta de atualização e aperfeiçoamento. A todos esses relevantes detalhes, acrescentaríamos um novo percalço, qual seja, o endividamento, passível de negativação, restrição a crédito e até mesmo ações judiciais de cobrança, sobrecarregando ainda mais a Justiça.
Salvo entendimento contrário, focar em quem já se encontra afundado em problemas não pode ser a melhor saída para uma sociedade que se considera civilizada. Não podemos esquecer que os crimes também preveem penas de multa, e que a maioria dos condenados são pessoas carentes financeiramente, inclusive assistidos pela Defensoria Pública, revelando-se ineficaz o cumprimento de penas pecuniárias.
Sob o ponto de vista constitucional, releva ponderar a existência de uma cláusula pétrea, constante no artigo 5º, inciso XLVII, alínea c, a qual veda expressamente o trabalho forçado, previsão também inserta na Convenção Americana dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Quem conhece minimamente uma estrutura penitenciária sabe que não existe campo de trabalho, bem como oferta laboral para todos os internos.
Nesse sentido, vale lembrar que o Estado do Espirito Santo possui mais de 22 mil presos. Existem múltiplas formas de cumprimento de pena além da prisão. O projeto de lei nº. 580 de 2015 nos aproxima do cenário da escravidão, pois os encarcerados estarão obrigados a, literalmente, trabalhar em troca de água, roupa e comida, sem muitas chances de sobreviverem de forma independente após alcançarem a liberdade.
O custo da prisão é do criminoso
Carlos Eduardo Ribeiro Lemos é juiz de Direito estadual, professor de Direito Penal da FDV e mestre em Direitos e Garantias Constitucionais
O ócio é a moradia do diabo. A não ocupação produtiva do sujeito alimenta frustrações e rancores, principalmente no tocante a alguém preso. Tal situação fomenta a cultura da delinquência, e com isso todos concordam. O trabalho prisional é a melhor forma de ocupar o tempo ocioso do condenado e diminuir os efeitos criminógenos da prisão e, a despeito de já ser obrigatório, hoje é um direito do apenado, e pela lei atual será sempre remunerado. É muito caro manter uma pessoa reclusa, e o art. 145, II, da Constituição Federal prevê que União, Estados e até municípios podem cobrar taxas pela utilização de serviço público específico. Ora, nada mais didático do que o preso saber que o custo que o Estado tem é de sua responsabilidade por ter cometido o crime.
Daí não ser inconstitucional o projeto que prevê a obrigatoriedade de o preso ressarcir as despesas de sua prisão. Porém, cabe registrar que hoje os presídios só proporcionam trabalho para cerca de 16% dos presos, sendo imensa a dificuldade dos governos estaduais de fomentar a geração de postos de trabalho. E isso não é porque o preso não quer trabalhar, ao revés, quer muito, pois com o trabalho ele já teria outro benefício, chamado remição, abatendo um dia de pena a cada três dias trabalhados. Só que os governos não criam frentes de trabalho e aí a questão: se ele quer trabalhar, até mesmo para ressarcir o Estado, mas não tem onde fazê-lo, seria justo mesmo assim cobrar sua permanência? Acredito que não. Mas, voltando ao objeto do projeto, a obrigação de ressarcir já é feita em vários países. Tive a oportunidade de ver em presídios americanos que os presos recebem a conta pelo número de diárias de permanência. Não podendo pagar, ficam negativados junto ao governo como qualquer devedor de tributos.
Concluindo, o trabalho nas prisões atenderia a vários objetivos: ressocializar e diminuir a população carcerária pela remição da pena, preparar para o ambiente de trabalho com o aprendizado de algum ofício para quando retornar ao convívio social e ressarcir o Estado. Mas, para isso, os governos precisarão reconstruir a cultura da arquitetura e administração prisional, visando a construção de frentes de trabalho para que possamos, aí sim, efetivar a proposta legal em discussão.
Preso tem mais é que trabalhar e ter condições de dignidade. Se não por direito, por eficiência administrativa. E esse é um desafio que o projeto traz. A lei deve trazer essas novas obrigações para os presos, mas deveria também trazer obrigações para os governos criarem políticas de trabalho prisional. Todos sairiam ganhando.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta