Termo é inadequado e estimula conflitos
José Hiran da Silva Gallo é pós-doutor em Bioética e coordenador da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do Conselho Federal de Medicina
Há alguns anos, o termo violência obstétrica passou a ser usado como um mantra por alguns grupos organizados para chamar a atenção para problemas que se passam no âmbito da assistência à gestante, em especial no momento do parto. No entanto, os médicos entendem que sua adoção tem trazido efeitos deletérios para o processo de atendimento, sem, necessariamente, levar à correção de eventuais equívocos.
Na prática, percebe-se que essa expressão conturba a relação médico-paciente; quebra o princípio da harmonia nas equipes multiprofissionais; e transfere de modo inconsequente sobre os médicos, sobretudo os obstetras, a responsabilidade por todas as mazelas da saúde (pública ou privada). Assim, o Conselho Federal de Medicina (CFM) entende que essa adjetivação é inadequada, pejorativa e estimula conflitos.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que o CFM e os médicos brasileiros são totalmente contrários a qualquer tipo de ação que estimule ou permita a prática da violência contra pacientes e profissionais, em qualquer circunstância, independentemente de idade, etnia, nível socioeconômico, grau educacional, sexo ou outra característica.
No caso da mulher, em todas as fases da vida, além de proteção contra a violência, o CFM defende que lhe seja oferecida assistência em saúde de forma integral e com qualidade, em especial em períodos de gestação (pré, durante e pós-parto), para lhe assegurar e ao seu filho vida e bem-estar.
Em outras palavras, o fato de ser contra o uso dessa terminologia não significa que o Conselho de Medicina ou os profissionais da área concordem com práticas abusivas, como o déficit no número de leitos obstétricos. Em 2014, o CFM e a Federação das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) já denunciavam o fechamento de mais de 3,5 mil leitos de internação para a mulher gestante.
Na época, no país, pelo menos três maternidades vinculadas a hospitais filantrópicos e conveniados haviam encerrado suas atividades e as entidades médicas já cobravam providências para melhorar esses e outros aspectos da assistência.
No texto, o CFM e a Febrasgo cobravam, entre outras medidas, a ampliação e aperfeiçoamento dos instrumentos de custeio dos hospitais filantrópicos responsáveis por mais de 50% dos atendimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS); e o descongelamento e reposição das perdas acumuladas dentro da Tabela SUS (em consultas e procedimentos).
A luta pelo fortalecimento da assistência nas maternidades públicas, que deve ser pautada pela qualidade e integralidade, é fundamental para que todas as mulheres recebam o que precisam na hora do parto. Essa cruzada, que tem sido abraçada ao longo dos anos, apenas exemplifica o quão injusto é o uso dessa expressão (violência obstétrica), jogando sobre os profissionais a responsabilidade por todas as mazelas da saúde (pública ou privada), como se fossem culpados pelos graves indicadores de mortalidade e de morbidade materno e infantil.
Afinal, não se pode ignorar que o médico tem como fundamento de profissão minorar o sofrimento do ser humano. Sendo assim, não há qualquer sentido pressupor que esse profissional, no exercício de suas funções, vá praticar atos que prejudiquem seus pacientes, sejam eles homens ou mulheres.
Proibição mantém problema na obscuridade
Priscilla Ferreira e Silva é doutora em Enfermagem, mestre em Saúde Coletiva, enfermeira obstetra e professora da Ufes
Maria estava com 41 semanas de gestação do seu primeiro filho. Começou a sentir dores no meio da madrugada. Na segunda maternidade visitada, ela conseguiu internação, porém foi informada de que seu esposo não poderia estar com ela, pois o ambiente de pré-parto é coletivo e acompanhante homem não entra. Teria que ficar sozinha. Deita e abre bem as pernas que eu vou fazer o toque. Parto dói mesmo. Não adianta chorar agora. Na hora de fazer não reclamou. Assim não dá, você está atrapalhando o meu trabalho e eu tenho muita gente para atender. Não grita, senão o neném sobe. Assim você não está ajudando o seu neném a nascer, você quer que ele morra? Você não está fazendo a força certa. Eu vou te ajudar: vou fazer um cortezinho aqui e meu colega vai empurrar a sua barriga bem forte para o seu neném sair. Viu, eu disse que ia te ajudar. Agora vou dar uns pontinhos aqui para ficar bem apertadinho de novo, senão o marido arruma outra.
O relato fictício do parto de Maria, um mosaico de violências obstétricas, traduz a realidade que muitas mulheres vivenciam. São exemplos de violência obstétrica a recusa em administrar analgésicos, as frases ofensivas, a realização de procedimentos sem consentimento, a não liberdade de movimentação e de escolha da melhor posição para o parto, entre tantas outras.
No início de maio, o Ministério da Saúde emitiu um despacho em que recomenda abolir o termo violência obstétrica, sob a alegação de que não há intencionalidade do dano por parte do profissional e que o termo prejudica a busca pela humanização do serviço. Mas será que a violência deixa de existir se não a chamarmos pelo seu verdadeiro nome?
Uma pesquisa realizada pela fundação Perseu Abramo revela que, no Brasil, uma em cada quatro mulheres (em espaços públicos e privados) sofreu violência obstétrica. Um estudo de 2017, realizado com quase 104 mil mulheres, apontou que 54% tiveram seu direito a acompanhante negado pelo serviço de saúde e 95% pariram na posição deitada, que fisiologicamente dificulta o trabalho de parto para a mulher.
Na maioria das vezes, a violência é travestida de cuidado ou de norma institucional, podendo ser praticada por qualquer membro da equipe. Por isso pode ser difícil enxergar o que salta aos olhos, mas que, por ser tão comum, passa a ser visto com naturalidade: É assim mesmo.
Devido a sua importância e magnitude, a violência obstétrica na contramão do despacho do ministério vem sendo debatida e incorporada em documentos e políticas públicas, como a HumanizaSUS e as diretrizes de atenção ao parto e pós-parto. O Ministério Público Federal, em resposta ao governo, já afirmou que o termo já consagrada em legislações vigentes, documentos científicos e sociedade civil.
O enfrentamento franco à violência obstétrica passa por educação permanente e por medidas que criem um modelo de assistência mais humanizado, esclareçam as mulheres sobre seus direitos e punam efetivamente os casos de violação. Proibir o uso do termo, longe de alcançar melhores resultados na qualidade da assistência à saúde da mulher, só teria o efeito de manter na obscuridade a violência que tantas mulheres e seus filhos vêm sofrendo em nosso país.
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