Um caso inusitado tem mexido com o meio jurídico do Rio Grande do Sul. No último dia 4 de maio, a 4ª Turma do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF4) manteve decisão de primeira instância e retirou uma criança, atualmente com 2 anos de idade, como uma das autoras de um processo contra o Hospital Universitário de Santa Maria, que pede indenização devido a um suposto erro médico.
A família processa a Universidade Federal de Santa Maria, responsável pelo hospital, alegando que procedimento mal feito de laqueadura, realizado em 30 de agosto de 2016, não teria evitado que a mãe engravidasse - a criança nasceu em setembro de 2019.
Na ação, é pedida indenização de R$ 50 mil por danos materiais, mais meio salário mínimo (atualmente R$ 606) por mês, até a menina completar 18 anos. O processo tinha como autoras a mãe e a criança nascida pelo procedimento de esterilização que não funcionou.
Com a decisão do colegiado, a criança entra no polo passivo da ação, junto com outros quatro irmãos.
"Da forma como descrito o cenário, optaria a criança em não receber a dádiva da vida, em decorrência da miserabilidade econômica enfrentada pela sua família. Buscaria, então, indenização pelo fato de ter nascido. Todavia, em face da inexistência do 'direito de inexistir', há que determinar-se a retificação, de forma a extrair do polo ativo da ação, a menina, passando a figurar, como autores, somente os sucessores habilitados da falecida", escreveu o juiz César Augusto Vieira, da 1ª Vara Federal de Carazinho (RS), a 250 km de Santa Maria e onde a família mora atualmente.
"Certamente, as agruras suportadas pela autora não devem ser desprezadas. Mas isso não admite a interpretação em que uma criança escolhesse o cenário de sua inexistência em face de tais dificuldades", disse outro trecho escrito pelo magistrado no processo.
"Saliento, por oportuno, que isso não diminui a honra do labor de tal mãe. Também não diminui a pretensão sobre eventual indenização nesta ação", escreveu o juiz de primeira instância em uma de suas decisões.
Em outra reviravolta no caso, o pai, atualmente desempregado, se tornou o principal autor do processo, porque a mãe da criança morreu de Covid-19 em abril do ano passado, aos 36 anos, menos de um mês antes de a ação começar a tramitar na Justiça Federal.
"Foi ela quem nos procurou, mas tínhamos todo o pré-processual", afirmou a defensora pública Vivian de Almeida Sieben Rocha, da Defensoria Pública da União, uma das autoras da ação, sobre o fato de a mãe da criança, mesmo morta, integrar as fases iniciais do processo. "É realmente um caso delicado."
A Defensoria Pública recorreu ao TRF4 com a alegação de que a decisão "afronta o direito fundamental de acesso à Justiça, na medida em que nega à agravante a possibilidade de figurar como parte no processo".
Foi argumentado pela defesa que "não há qualquer elemento a indicar que ela [criança] pleiteia suposto direito de inexistir".
"Na realidade, o que ela busca é o direito à reparação dos danos que a família sofreu por culpa do hospital administrado pela ré", afirmou defesa no processo.
Mas a quarta turma manteve a decisão de primeiro grau. "No caso dos autos, possui legitimidade ativa para buscar a indenização pelo suposto erro médico ocorrido na laqueadura de trompas da autora, que engravidou e deu luz à menina, o que, segundo a tese da inicial do processo originário, configuraria dano a ser reparado", concluiu o juiz Sérgio Renato Tejada Garcia, relator do caso.
Para a defensora Rocha, não é incomum crianças estarem à frente de processos judiciais. Ela cita que na própria Defensoria são comuns casos envolvendo menores de idade em busca de tratamento médico ou de medicamento, e que representam os pais.
O processo, que ainda está na sua fase inicial, volta à etapa de instrução em primeira instância, com a apresentação de provas e perícias. "Estamos fazendo o possível para comprovar tudo que foi alegado", afirmou a defensora.
Questionado sobre a acusação de erro médico, o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) disse que que prestou os esclarecimentos no processo judicial. "A unidade informa que não pode, por uma questão legal, fornecer dados sobre o atendimento dos seus pacientes."
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