Um ano após a morte de Kathlen Romeu, 24, o Ministério Público do Rio não ofereceu denúncia pelo homicídio da jovem, atingida no tórax por um tiro de fuzil quando visitava a avó no Complexo do Lins, zona norte do Rio. Grávida de quatro meses, ela sonhava em formar uma família e havia deixado a comunidade por medo da violência um mês e meio antes de ser baleada.
Mãe da designer de interiores, Jacklline Oliveira, 41, considera que a Justiça tem sido lenta em relação à morte da jovem. "Essa morosidade faz com que a minha filha seja assassinada todos os dias. Todo dia para mim é dia 8 de junho", diz ela. "Não perdi só quando enterrei minha filha. Eu perco todos os dias. Eu perco quando vou ao Ministério Público e não tenho uma resposta. Eu estou há 12 meses perdendo."
Ela afirma que o promotor Alexandre Murilo Graça - responsável pelo caso - teria dito que, em dezembro do ano passado, daria respostas sobre o homicídio, o que não aconteceu.
Já em abril deste ano, depois que amigos e familiares fizeram um ato em frente ao Ministério Público, o órgão teria afirmado que daria resposta ainda naquele mês, o que também não se concretizou.
"A quem interessa essa lentidão? O que falta para resolver o caso da Kathlen? É porque ela era negra e da favela?", questiona Oliveira. "Se fosse uma jovem [de classe média] da zona sul, primeiro que ela nem seria assassinada. Mas, se fosse, os responsáveis já estariam presos."
Em nota, o promotor diz que aguarda a conclusão do inquérito para se manifestar sobre as provas que foram colhidas. "O oferecimento de denúncia ou pedido de arquivamento se fará com a reunião do inquérito e do procedimento investigatório criminal, onde será analisado se houve confronto e sobre a existência de causa de exclusão da conduta", afirma ele.
A morte de Kathlen deu origem a duas investigações no Ministério Público do Rio, conduzidas por promotores diferentes. Na primeira apuração, a 2ª Promotoria de Justiça, em conjunto com a Auditoria da Justiça Militar, denunciou cinco agentes por supostamente alterarem a cena do crime: o capitão da PM Jeanderson Corrêa, o 3° sargento Rafael Chaves e os cabos Rodrigo Correia de Frias, Cláudio da Silva Scanfela e Marcos Felipe da Silva Salviano.
De acordo com a acusação, Frias e Salviano retiraram do local cartuchos de fuzis que teriam sido disparados pelos dois. Para isso, teriam contato com ajuda de Scanfela e Chaves. A denúncia afirma que os quatro teriam acrescentado à cena 12 cartuchos calibre 9 mm deflagrados e um carregador de fuzil 556, com dez munições intactas, para "criar vestígios de suposto confronto com criminosos".
Scanfela, Salviano, Chaves e Frias foram denunciados sob suspeita de duas fraudes processuais e de dois crimes de falso testemunho. Já o capitão Jeanderson Corrêa foi denunciado sob acusação de fraude processual na forma omissiva --de acordo com a Promotoria, ele se omitiu quando tinha a obrigação de vigiar os agentes, já que era o superior hierárquico na ação. A reportagem não localizou a defesa dos acusados.
A segunda investigação apura os responsáveis pela morte da jovem e é a que tem sido alvo de críticas. Advogado da família de Kathlen, Rodrigo Mondego diz que o promotor Graça já teria dado a entender que poderia pedir o arquivamento do caso, informação que a mãe da jovem endossa.
Segundo Jacklline, Graça teria dito que ela poderia recorrer a outras instâncias se o caso fosse arquivado. Graça é o promotor que pediu à Justiça o arquivamento do inquérito que investiga uma operação da Polícia Militar que deixou em 2019 ao menos 13 mortos no morro do Fallet, centro do Rio.À época, moradores denunciaram a prática de tortura e afirmaram que as vítimas foram mortas mesmo depois de terem se rendido.
Ao pedir o arquivamento, Graça disse que os agentes teriam revidado um ataque de criminosos. "Em que pese o número de mortos, parece-nos pacífico que todos possuíam envolvimento com o tráfico de drogas do local", escreveu ele. A Justiça, porém, rejeitou o pedido argumentando ser necessário aprofundar as investigações.
Segundo Modengo, o promotor teria indicado que poderia arquivar o caso de Kathlen em razão da dificuldade para determinar qual policial teria dado o tiro que matou a jovem.
O advogado diz, porém, ter outra avaliação. "A gente entende que, se o tiro partiu de dois policiais para atingir suspeitos de crime numa tentativa de execução sumária, existe um concurso de ações e desígnios entre eles. Consequentemente, os dois deveriam responder independente de qual bala acertou a Kathlen."
De acordo com o laudo de reprodução da morte feito pela Polícia Civil, o tiro que matou a jovem partiu do Beco da 14, local no Complexo do Lins onde estavam os policiais Frias e Salviano.
A primeira denúncia da Promotoria usou como base esse laudo para apontar que os agentes efetuaram os disparos que atingiram Kathlen na rua Araújo Leitão, paralela ao Beco da 14.
"Como se não bastasse o fato de que, por completa falha do Estado, os moradores do chamado Complexo do Lins se verem reféns do tráfico de drogas e vítimas de suas muitas violências, também precisam sobreviver a rotina de ações policiais, muitas vezes desastradas", diz a denúncia.
Mondego considera que o Estado acaba respaldando a violência ao agir de maneira letárgica diante de casos como os de Kathlen. "Quando um caso desses, que já tem testemunhas e laudo, demora [a ser resolvido], é uma forma de o Estado respaldar a sua violência."
A mãe da jovem afirma que vai continuar lutando pela memória da filha. "Não vou me calar, não vou me cansar. Vou aonde eu puder ir até o último dia da minha vida", diz ela. "Não por justiça. Ninguém vai fazer justiça por ela. Se o Estado fosse justo, ela estaria aqui do meu lado. É pela memória dela e para outras mães não chorarem o que eu estou chorando."
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