Motoristas e entregadores devem ter um piso de pagamento por hora trabalhada para plataformas de entrega e de transporte de passageiros? Como podem ter acesso a aposentadoria e auxílios em casos de acidente? Quanto e quem deve pagar por isso?
A resposta para questões que definem direitos e deveres de trabalhadores de plataformas está ligada a uma disputa que tem gerado debate no mundo inteiro: como enquadrar a relação entre eles e as empresas da área.
Se esses trabalhadores não têm todas as características de empregados tradicionais e tampouco de autônomos da forma que conhecemos, como definir o tipo de vínculo com as plataformas?
Essas atividades estão no que pesquisadores da área chamam de “zona cinzenta” – quer dizer, quem não é geralmente considerado empregado nos moldes tradicionais, mas também não tem todas as características de um trabalhador autônomo.
É um desafio trazido pela chamada gig economy (ou economia de bicos) em todas as regiões do mundo, com o crescimento do trabalho por meio de aplicativos. Segundo relatório de 2021 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o número de plataformas digitais de trabalho quintuplicaram em todo mundo na última década.
Em entrevista à BBC News Brasil, o diretor do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil, Vinícius Pinheiro, defendeu a necessidade da regulação do trabalho em plataformas e argumentou que novas regras não afastariam empresas do país. “Não é possível que tecnologias do século 21 coexistam com condições do século 19”, disse.
Enquanto o governo brasileiro discute com empresas e trabalhadores quais podem ser as propostas de regras para a área (leia mais abaixo), o que está sendo feito em outros países?
Em países como Chile e Espanha, foram criadas leis que garantiram direitos específicos para a categoria. Na França, a legislação exige que as empresas ofereçam determinados seguros aos trabalhadores. Já no Reino Unido, a decisão sobre direitos da categoria tem ficado na mão dos tribunais.
Nesta reportagem, conheça os principais caminhos que governos e cortes de justiça na Europa e na América Latina estão tomando – e onde trabalhadores de aplicativo encontram regras que hoje garantem mais direitos do que no Brasil.
Antes, é preciso entender a dificuldade de enquadrar trabalhadores da economia das plataformas em leis preexistentes em diversos países.
O professor de Direito da Universidade de Bristol (Reino Unido) Manoj Dias-Abey explica que, com a existência de apenas duas categorias principais – empregado e autônomo – na maiorias dos países, há diversas disputas judiciais para questionar em qual modalidade se enquadram esses trabalhadores. São, por exemplo, ações que pedem o reconhecimento de trabalhadores de plataforma como empregados em vez de autônomos (veja abaixo o exemplo do Reino Unido Unido).
“Esse tem sido um tema muito polêmico no mundo. O problema é que existe uma classificação binária na maioria das jurisdições (empregado e autônomo) e você tem que ser caracterizado como empregado para obter acesso a proteções de emprego – como salário mínimo, férias e licença médica – enquanto os autônomos não têm direito a nenhum deles”, afirmou à BBC News Brasil o professor da instituição britânica, que tem pesquisas focadas em direito do trabalho, migração e política econômica.
O economista Leonardo Rangel, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com foco em trabalho e previdência, diz que, entre o que seriam características de uma forma clássica de relação de emprego, está o fato de os motoristas estarem subordinados a um algoritmo das empresas que gerencia e avalia o trabalho.
Ao mesmo tempo, aponta que a característica mais marcante de trabalho independente nesse modelo é, em teoria, a flexibilidade. "Você tem, ao mesmo tempo, um trabalhador subordinado ao algoritmo, cujo trabalho é gerenciado e avaliado por ele, mas ao mesmo tempo ele pode desligar o aplicativo e fazer outra coisa no momento que ele quiser."
“Há uma dicotomia de o trabalho de aplicativo ter face arcaica e moderna ao mesmo tempo. A moderna está no fato de trabalharem com altíssima tecnologia, e a face arcaica é depender de trabalho desregulado, desprotegido, que gera renda baixa e volátil”, diz Rangel, que é um dos autores do estudo que apontou que apenas um a cada quatro entregadores e motoristas autônomos paga contribuição ao INSS no Brasil.
Apesar de a questão levantar debate no mundo inteiro, pode afetar de forma diferentes os países, dependendo do cenário socioeconômico.
Um ponto importante que marca a diferença dos efeitos desse tema na Europa e na América Latina, segundo Rangel, é o nível de informalidade aos quais estão acostumados.
Enquanto no Brasil e em seus vizinhos a informalidade é um traço histórico, diz ele, para os europeus, “a grande novidade é você ter um setor da economia estruturado com base no trabalho desregulado e desprotegido”.
“O trabalho em plataforma não é culpado pela grande informalidade nesses países da América Latina, mas acaba jogando luz (nesse problema) porque tem roupagem moderna”, diz. “O dilema é como faz para proteger, para regular, sem parar as inovações.”
Olívia Pasqualeto, professora de Direito do Trabalho e Previdenciário da FGV Direito SP, aponta que o Brasil vê hoje tanto decisões judiciais que condenam plataforma a pagamento de uma multa alta e reconhecimento de trabalhadores como empregados, quanto decisões que entendem que essas pessoas não são empregadas.
Em uma decisão recente, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu um processo em trâmite na Justiça do Trabalho que reconhecia o vínculo de emprego de um motorista com uma plataforma. Em uma análise preliminar, o ministro considerou que a decisão destoava da jurisprudência do Supremo no sentido da permissão constitucional de formas alternativas à relação de emprego.
Pasqualeto diz que “existe uma certa dúvida sobre o que acontece na jurisprudência – o que não é bom para ninguém” e afirma que “a regulação seria muito bem-vinda”.
“Hoje quando um trabalhador me pergunta: você acha que devo propor uma ação judicial? Tenho chance de ser considerada empregada? (Eu digo que) olha, depende né? Depende do tribunal, de onde é a ação, o que aconteceu”, diz ela, que também é pesquisadora no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV e no FGV Cidades.
Como, então, os países estão encontrando saídas para esta questão?
Rangel analisou mudanças tomadas em 15 países na Europa e na América Latina nos últimos anos e destacou três principais caminhos:
Um dos caminhos é a decisão judicial, quando acaba nas mãos de cortes superiores determinarem regras para o tratamento desses profissionais.
O maior exemplo nesse sentido é o Reino Unido, onde a Suprema Corte decidiu em 2021 que os motoristas eram "trabalhadores" (workers, em inglês), categoria profissional que faz com que tenham direito a salário mínimo, férias e aposentadoria.
Essa categoria é uma modalidade intermediária, segundo as leis britânicas – fica entre o empregado (employee) e autônomo (contractor).
“A decisão da Suprema Corte se baseou na análise do grau de controle que a Uber exercia sobre seus motoristas e na natureza do relacionamento entre a empresa e seus motoristas. Os juízes concluíram que os motoristas eram controlados de forma significativa pela empresa, o que indicava que eles eram trabalhadores com subordinação bem definida e deveriam ser contratados como empregados”, explicou Rangel.
Manoj Dias-Abey, da Universidade de Bristol, diz que, embora essa decisão tenha sido relativa aos motoristas da empresa, entregadores de delivery em moto usaram essa decisão para tentar negociações coletivas – “não tiveram sucesso até agora, mas seus casos estão prestes a chegar ao Supremo Tribunal muito em breve”, disse.
Outro caminho é a criação de uma lei, por meio de um projeto de lei enviado pelo governo ou do próprio Congresso para regular o trabalho.
“Em algumas situações, como caso do Chile e do Uruguai, você cria condições específicas para o trabalhador independente. Você deixa bem claro que tem os padrões mínimos dos requisitos que as empresas precisam seguir, mas não as obriga a contratá-los como empregados”, diz Rangel.
Em 2022, o Chile aprovou lei para regular as novas formas de trabalho trazidas pelo uso de plataformas digitais. Um dos pontos centrais da reforma chilena é que o trabalhador de aplicativo pode ser considerado como dependente ou autônomo em relação às plataformas digitais, dependendo de condições do código de trabalho chileno.
Entre as normas estabelecidas no Chile, estão a exigência de arrecadação tributária e acesso à proteção social. Também ficou estabelecido que o valor da hora de trabalho não poderá ser inferior à proporção do salário mínimo mensal por hora, com um acréscimo de 20%. Além disso, a lei estabelece o tempo mínimo de desconexão de doze horas contínuas em um período de 24 horas.
No Uruguai, em 2022, o governo apresentou ao Congresso projeto de lei para regular o trabalho em plataformas digitais de entrega de mercadorias e transporte de passageiros. A proposta prevê o acesso aos benefícios da seguridade social por meio de contribuição através de um sistema (chamado Monotributo) mais barato e menos burocrático que as outras formas de recolhimento.
Na Europa, o maior exemplo é a Espanha, que obrigou empresas, com a Ley Rider, de 2021, a contratarem entregadores como empregados.
Ao serem contratados como empregados, segundo as leis do país, passaram a ter direito a jornada de trabalho regulada, descanso e férias remuneradas, licença maternidade, e cobertura do sistema de proteção social.
“As consequências para cada uma dessas intervenções sempre há. Na Espanha, as notícias foram de que no curto prazo houve diminuição da oferta de trabalho, mas depois o número de entregadores estava crescendo”, diz Rangel.
“O terceiro caminho – que tem sido adotado até o momento pela França, por exemplo, e pela Dinamarca – é obrigar uma maior responsabilidade da empresa no sentido de mais responsabilidade social: vem cá, você tem que oferecer seguro de acidente de trabalho para esses profissionais, um seguro de substituição de renda caso adoeçam”, diz Rangel.
Ele explica que, nessa linha de entendimento, não existe um mecanismo estatal para oferecer benefício da seguridade social, “mas o Estado entra obrigando as empresas a oferecerem por conta delas mais proteção para o trabalho”.
Na França, onde não há categoria além de empregado ou autônomo, foram feitas nos últimos anos mudanças nas leis relativas ao trabalho em plataformas digitais. A Lei El Khomri, de 2016, mesmo sem entrar no debate se o trabalhador de aplicativo é empregado ou prestador de serviço, determinou que as empresas ofereçam seguros individuais contra acidente de trabalho e doença.
Em 2019, outra lei francesa estabeleceu que trabalhadores de plataforma podem se recusar a prestar um serviço sem que isso resulte em sanção – isso, segundo Rangel, significa que essas decisões dos trabalhadores não podem mais ser usadas pelas plataformas para sancioná-los e tampouco para rescindir uma relação contratual.
A discussão sobre o que devem ser as regras do trabalho para plataformas vem crescendo no Brasil, onde o Ministério do Trabalho discute com plataformas e trabalhadores os termos para uma proposta de regulação a ser enviada ao Congresso Nacional.
E quais são os pontos sobre os quais se espera definições no Brasil, segundo os especialistas?
“Remuneração, saúde, segurança, transparência e previdência são os pontos sobre os quais conversamos. Os aplicativos não querem fazer nada”, disse o presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Francisco da Silva, o Gringo, que defende um formato de remuneração que considere hora logada nos aplicativos (em vez de tempo de entrega).
Procurada pela BBC News Brasil, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) – que representa empresas de mobilidade como iFood e Uber – disse que “a relação entre empresas e profissionais não caracteriza vínculo nos moldes da CLT, formato que não se adequa à realidade criada pelo trabalho em plataformas”.
A associação afirmou, ainda, que participa “de forma construtiva” do grupo de trabalho “para propor uma regulação para o trabalho executado por intermédio de plataformas tecnológicas”.
Uma decisão judicial em setembro aumentou a urgência de definições sobre esse tema: a Uber foi condenada a pagar uma indenização de R$ 1 bilhão e a contratar formalmente os motoristas ligados ao aplicativo, segundo decisão que considerou que a empresa "se omitiu" em cumprir a legislação do trabalho. A Uber informou que recorreria (entenda mais aqui).
Em discurso na assembleia da ONU, nos Estados Unidos, Lula disse em setembro que “aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos”.
Esse tema foi mencionado no plano de governo de Lula, enquanto era candidato.
O documento mencionava que sua gestão revogaria o que chamou de "marcos regressivos" da legislação trabalhista e dizia que o governo pretendia propor "uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas".
Após assumir o comando do Ministério do Trabalho, o ministro Luiz Marinho disse que daria prioridade à "regulação das relações de trabalho mediadas por aplicativos e plataformas, considerando especialmente questões relativas à saúde, segurança e proteção social". A ideia, segundo ele, é "assegurar padrões civilizados de utilização dessas novas ferramentas".
No início do ano, Marinho disse que pretendia apresentar uma proposta de regulação do trabalho por aplicativo no primeiro semestre – o que não aconteceu.
Nas últimas semanas, a expectativa era de que o grupo de trabalho chegasse ainda em setembro a uma proposta a ser encaminhada ao Congresso – com regras para jornadas, remuneração e proteção social dos trabalhadores –, mas isso ainda não aconteceu.
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