Caríssimo leitor, é com inenarrável júbilo que aqui me apresento para discorrer, com a necessária venia, sobre o mui nobre intento de incutir no seio das práticas jurídicas a simplicidade do vernáculo. Não obstante a magnânima relevância das palavras de outrora, cujas raízes mergulham profundamente no âmago da tradição lusa, é mister considerar que o uso exacerbado de frases intrincadas e verbosidades peremptórias, a despeito de seu apelo à erudição, por vezes redunda em escassa compreensão por parte dos menos afeitos aos meandros jurídicos.
E aí, se esforçou para entender?
Pois é, nós, juristas, complicamos demais. Parece absurdo, mas o Direito, que deve albergar a todos, muitas vezes se perde em seu próprio vocabulário, criando uma barreira linguística que afasta quem mais precisa dele. A verdade é que o juridiquês, esse idioma peculiar que magistrados e advogados insistem em preservar, dificulta que o público leigo entenda o que está em jogo.
E o mais curioso é que não estamos falando de palavras exóticas ou de expressões latinas arcaicas (bem, às vezes sim), mas de uma linguagem rebuscada que, convenhamos, soa mais como um ritual de iniciação do que como comunicação.
É aqui que surge a questão da “linguagem simples”. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a incentivar o uso de uma linguagem mais acessível, premiando tribunais que adotam o português claro e direto. E a iniciativa faz todo sentido. Afinal, como podemos garantir o acesso à justiça quando a compreensão do próprio processo é quase um mistério?
Na prática, estamos falando em eliminar expressões como “sine die” e “data venia” e substituí-las por “sem data marcada” e “com todo respeito”, termos que qualquer pessoa entende, sem precisar de um dicionário ao lado.
Mas quando se fala em linguagem simples, longe se está de linguagem errada. A simplicidade não prescinde de um português correto e, ainda, que sejam preservados os termos técnicos. A ferramenta de trabalho do jurista é a linguagem, quão mais precisa e inteligível, mais acertada é a aplicação do direito.
O problema, portanto, se divide em dois extremos. De um lado a linguagem rebuscada e inacessível e, de outro, a linguagem errada, o desconhecimento que muitos profissionais têm do uso de sua própria ferramenta de trabalho. Outro dia, em uma audiência, um advogado foi soletrar uma palavra e soltou um “i de iscola”.
É claro que o fez porque estava desatento aos detalhes, ante a preocupação na solução do caso, mas não raro lemos petições com um português “sofrível”. Errar vez ou outra é absolutamente normal, o problema é quando a coisa se torna crônica.
A campanha pela linguagem simples vem para corrigir isso. O STF propõe que falemos o português que todos entendem – não o "internetês" das mensagens instantâneas, onde abreviações como “vc” e “pq” dominam, mas também não o português formal de uma petição do século XIX. É um meio-termo que visa trazer clareza sem sacrificar o respeito pela norma culta. E não se trata de abrir mão da precisão; pelo contrário, é exatamente para garantir que a justiça seja clara e compreensível.
Mas a resistência é grande. Muita gente acredita que a pompa da linguagem confere autoridade e segurança, além de mostrar para o cliente o quão culto o advogado é. A ideia de que “quanto mais difícil, mais importante” parece ter se enraizado no campo do Direito, embora os tempos modernos peçam justamente o oposto.
Cada vez mais, tribunais em todo o mundo têm percebido que uma comunicação clara fortalece a confiança pública no sistema de justiça. Um texto simples e bem escrito é a forma mais respeitosa de fazer com que todos compreendam o que acontece dentro do tribunal, inclusive os que não têm formação jurídica.
Sejamos claros: estamos aqui para garantir que a justiça seja acessível a todos. E “acessível” significa compreensível. Imagine que você, sem formação jurídica, está tentando entender uma sentença que envolve seus direitos trabalhistas. Deparar-se com expressões como “deferimento parcial da tutela” ou “prescrição intercorrente” pode não fazer sentido.
A linguagem simples se propõe a traduzir essas frases complexas em termos diretos. “Tutela” vira “proteção”, “prescrição” pode ser explicada como “prazo final para reivindicar algo”. E veja só: o leitor entende, o tribunal cumpre sua função, e a Justiça se aproxima de seu verdadeiro objetivo.
Longe de vulgarizar o Direito, a linguagem simples traz para o campo jurídico o valor da empatia. Reconhecemos que o Direito existe para servir ao público, e que a forma como nos comunicamos importa. Ao tirar o juridiquês da jogada, estamos reforçando a conexão entre o cidadão e a Justiça, permitindo que todos saibam o que esperar de um processo, de uma sentença, ou de um recurso.
Portanto, caro leitor, o que o STF e outros tribunais propõem é uma forma de democratizar a Justiça. Para que serve uma sentença se ninguém entende o que ela diz? A linguagem simples tem um papel crucial nesse processo de simplificação. Com ela, buscamos um Judiciário mais transparente, mais compreensível e, portanto, mais próximo do ideal de Justiça que o Direito promete.
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