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Desacato ou abuso de poder? Juristas explicam como identificar diferenças

Desacato ou abuso de poder? Juristas explicam como identificar diferenças

A prisão de cidadãos por crimes de desacato, de desobediência ou de resistência exige que a polícia comprove a prática de condutas previstas pelo Código Penal

Publicado em 20 de julho de 2021 às 22:12

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Casal foi preso depois de questionar abordagem da polícia ao filho, de 7 anos
Casal foi preso depois de questionar abordagem da polícia ao filho, de 7 anos. (Reprodução / TV Gazeta)

Diante do caso recente em que uma criança de 7 anos foi abordada por policiais militares no bairro Planalto Serrano, na Serra, durante ação na última sexta-feira (16) que resultou na condução dos pais à delegacia por questionarem o ato policial, a reportagem ouviu especialistas para explicar o que configura abuso na postura dos agentes e quando há desacato à autoridade.

No caso em questão, segundo moradores da localidade, os policiais teriam apontado a arma para o menino durante a abordagem. A mãe teria perguntado: 'vocês estão ficando doidos?' e foi então repreendida e algemada. Segundo a Polícia Civil, o homem de 34 anos e a mulher de 27 anos, pais da criança, já na Delegacia Regional da Serra, assinaram um termo circunstanciado (TC) por resistência e foram liberados após assumirem o compromisso de comparecer em juízo.

Em nota, a PM disse que, após a abordagem policial a criança, "uma mulher questionou o motivo da abordagem ao menino. Foram explicados os motivos, no entanto ela questionou a conduta dos policiais e, por isso, recebeu voz de prisão". A PM acrescentou também que "qualquer pessoa que se sinta prejudicada pela ação dos agentes de segurança, pode procurar a Corregedoria da Instituição, munida de provas para que haja a devida apuração dos fatos".

Ao analisar o caso, o doutor em Direitos e Garantias Fundamentais, professor de Direito Penal e advogado criminalista Israel Domingos Jorio, afirmou que pode não ter havido crime de resistência por parte dos pais do menino. "Nessa situação, caso tenha havido abordagem equivocada por parte do policial, a mãe, tendo ficado revoltada, mostrou descontentamento", pontuou.

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Não é a mera exaltação da mãe que vai gerar automaticamente desacato. O desacato seria uma postura de desrespeito, menosprezo, que nega a autoridade da pessoa. Mas a mãe não está ali fazendo isso gratuitamente, ela estava manifestando um protesto por algo que ela julgou indevido

Israel Domingos Jorio
advogado criminalista
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"Se houve falha na atuação do servidor, o questionamento é válido por parte do cidadão, e, mesmo que este não tenha questionado da maneira mais educada, não quer dizer automaticamente que desacatou. A mãe está ali tentando apenas manifestar o descontentamento com a abordagem. Quando ela reage dessa maneira e o policial trata como desacato, ela pode então tentar alguma resistência para não ser levada presa. Só que aí o policial vai lá e prende, cometendo um novo erro, já que ela não tinha praticado crime", acrescentou Jorio.

No mesmo sentido, para o professor de Direito Processual Penal e advogado criminalista Ludgero Liberato, a prisão de cidadãos por crimes de desacato, de desobediência ou de resistência exige que a polícia comprove a prática de condutas previstas pelo Código Penal. "Deve ter previsão expressa, sob pena de o agente policial incorrer no crime previsto no art. 9º da Lei de abuso de autoridade, que pode levar a detenção, de um a quatro anos e multa", esclareceu.

Além disso, o jurista destaca que para haver crime de resistência o cidadão deve ter se oposto à prática de um ato legal, por parte do funcionário público, e se utilizando de violência ou de grave ameaça. 

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Os atos dos servidores públicos, inclusive dos policiais, são passíveis de questionamentos, desde que respeitados os preceitos legais, tanto durante sua prática quanto posteriormente, pelas vias judiciais ou administrativas. Por isso, o simples ato de questionar a Polícia sobre a legalidade dos atos praticados não configura desacato, crime este que pressupõe 'desprezo, falta de respeito, ou tentativa de humilhar a função exercida

Ludgero Liberato
advogado criminalista
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Também, para entender o crime de desacato, o advogado criminal, professor de Direito Penal e presidente da Comissão da advocacia criminal da OAB-ES, Anderson Burke explica que ele apenas se configura se presente a intenção 'vexatória' do cidadão sobre o funcionário público. "Porém, caso a intenção do cidadão seja realizar uma crítica técnica ao serviço prestado pelo funcionário público, sem essa intenção deliberada em humilhá-lo ou desprestigiá-lo, não há crime, pois não há dolo — intenção de cometer crime — nem tampouco um resultado de dano à administração pública", disse.

"NENHUM SERVIDOR PÚBLICO É INQUESTIONÁVEL", DIZ ADVOGADO

Também para Israel Domingos Jorio, "nenhum servidor público é inquestionável" em um contexto democrático. Para o especialista, dentro de uma democracia todas as atuações têm que ser fundamentadas e motivadas. "Tudo que é feito e interfere na liberdade do cidadão tem que ser motivado. Então é totalmente lícito para qualquer cidadão indagar os motivos pelos quais ele está sendo abordado, conduzido. Somente dentro de um sistema ditatorial que há atuação das forças policiais isenta de questionamentos. O cidadão tem direito a ter explicação", afirmou.

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Em uma democracia é possível questionar. Claro que, desde que o servidor se mantenha nos estritos limites da legalidade, ele deve ser respeitado e a ordem que ele dá deve ser obedecida. Mas, uma vez que sai do limite, surge para o cidadão o direito de se opor, não sendo obrigado a aceitar injustiça passivamente. É direito dele responder de maneira proporcional diante do abuso

Israel Domingos Jorio
advogado criminalista
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O crime de resistência, conforme explica o advogado, só se configura quando uma pessoa se opõe, usando violência ou ameaça, à execução de um ato legal, por funcionário público competente. Então, para que exista resistência, o requisito é que exista um funcionário praticando um ato dentro dos limites da legalidade. Se o ato sai da legalidade, não é possível considerar crime por parte do cidadão.

"A prática de um ato ilegal é uma das coisas que conduzem ao reconhecimento do abuso de poder, do abuso de autoridade. Uma pessoa que está sendo vítima de alguma das muitas formas de abuso de autoridade, vê surgir para ela o direito de resistência (não o crime). Caso exista a necessidade, é possível agir até mediante o uso de força física, hipótese em que está em legítima defesa, podendo acabar não respondendo por crime algum", continuou.

Na visão do professor, as pessoas se confundem e acham que toda abordagem policial tem que ser cegamente obedecida, sem nenhum tipo de questionamento. "Elas pensam que qualquer questionamento que se faça, já será visto como desrespeito. Quando um funcionário estiver praticando um ato ilegal, a pessoa agir de maneira desrespeitosa é auto-defesa. Se um funcionário aborda uma pessoa de uma maneira abusiva, como pode esperar que a pessoa reaja de maneira respeitosa e subserviente? O servidor público para merecer respeito tem que agir com respeito. Se ele se excede, a outra parte está desobrigada a abaixar a cabeça e aceitar abuso", concluiu.

LINHA TÊNUE

Para Anderson Burke, existe uma linha tênue entre o crime de resistência pelo particular e o abuso de poder pelo funcionário público. "O marco divisório está na legalidade, na adequação e na necessidade do ato pelo qual o funcionário público está a cumprir. Caso o ato seja legal, adequado e necessário para cumprimento pelo policial militar e o particular tenha então a obrigação de cumprir a ordem emanada, caso descumpra, será configurado o crime de desobediência. Indo além, se caso operada a desobediência, ainda por cima for oferecida resistência através de violência ou ameaça contra o servidor público, estaremos diante do crime de resistência", definiu.

Porém, em sentido oposto, o criminalista explica que, caso o ato seja deliberadamente ilegal, desnecessário ou inadequado para o cumprimento, o funcionário público estará infringindo a Lei de Abuso de Autoridade, a qual passou a criminalizar atos arbitrários por parte de funcionários públicos, inclusive por policiais militares.

"Estes, que devido à natureza da função que desempenham, na minha opinião, estão muito expostos à prática de referidas infrações penais em virtude das diversas situações de estresse, alto risco e por vezes hostilidade por parte de populares que se deparam cotidianamente no exercício do policiamento ostensivo. Logicamente, assim como existe em todas as profissões, alguns funcionários públicos não possuem o devido preparo técnico e equilíbrio psicológico para o desempenho da função a que estão empossados, porém, são casos que devem ser tratados como exceção diante da magnitude das instituições e extremo rigor pela corregedoria dos respectivos órgãos", finalizou.

DEFENSORIA PEDIU EXPLICAÇÕES À PM

Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES) pediu explicações à Polícia Militar sobre a abordagem feita à criança em Planalto Serrano. De acordo com o defensor Renzo Gama, do Núcleo da Infância e Juventude, a defensoria tomou conhecimento do caso pela imprensa e oficializou um pedido ao comando-geral do órgão, de informações e documentos sobre o caso. "A ideia é fazer contato com a família para entender o que aconteceu e enfim, acompanhar o desfecho dessa história", disse.

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Tratamos este caso como possível violência institucional. Infelizmente, são casos corriqueiros, não é algo raro não. Mas confesso que uma abordagem policial com arma em punho a uma criança de sete anos... Não lembro de ter visto algo sequer parecido com isso. É algo que chama atenção em razão dessa excepcionalidade

Renzo Gama
defensor público
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RELEMBRE O CASO

Um casal foi detido na noite desta sexta-feira (16) após questionar os policiais sobre a abordagem ao filho de 7 anos, no bairro Planalto Serrano, na Serra. De acordo com moradores, o filho do casal estava na rua com um amigo quando os policiais passaram em uma viatura e abordaram a criança. O casal e outros moradores do bairro disseram que os policiais apontaram a arma para o menino durante a abordagem.

Ao presenciar a situação, a mãe do menino teria questionado os policiais. Logo depois, o pai do menino e marido da mulher saiu de casa para saber o que estava acontecendo.

Um vídeo mostra o momento da prisão do casal e é possível ouvir o choro da criança e os gritos dos moradores. Uma moradora, que estava na porta da igreja presenciou tudo e disse que a ação dos militares foi bastante agressiva.

"A viatura não vinha correndo e, de repente, eles deram uma ré e entraram na rua da creche. Nesse momento, eles abordam uma criança de 7 anos, apontam uma arma, e tinha uma outra criança de uns 10 anos. Nesse momento, a mãe da criança de 7 anos chega perto da criança e grita, aonde a criança levanta a camisa e mãe pergunta 'gente, vocês estão ficando doidos?' Aí eles saem de dentro da viatura, com muita ignorância, já colocando a arma. Um deles pressiona a mãe da criança sobre a grade e diz que ela não deveria ter chamado os policiais de doidos", contou a moradora, em entrevista à TV Gazeta.

Segundo informações da PM, os policiais abordaram a criança porque acreditaram que ela estava armada. No entanto, o objeto na cintura do menino era um celular.

A mãe da criança, uma dona de casa de 27 anos, disse que em nenhum momento desrespeitou os policiais. "Eu só perguntei se eles eram doidos de apontar uma arma para uma criança. Ele falou que era para nunca mais eu chamar um policial de doido, falou que era estudado para aquilo e que eu estava querendo ensinar ele a trabalhar", disse, em entrevista à TV Gazeta.

A mulher contou ainda que o marido chegou depois e tentou levá-la para casa, mas foi impedido pelos policias, jogado no chão, agredido e algemado.

O QUE DIZ A PM

Em nota enviada na tarde desta segunda-feira (19), a Polícia Militar explicou que durante o patrulhamento no bairro Planalto Serrano, na noite da última sexta-feira (16), agentes avistaram um garoto andando na rua, segurando com uma das mãos um objeto que estava na sua cintura. "Isso levou à suspeita da equipe e ele foi abordado, sendo constatado que se tratava de um menor de sete anos e que o objeto era um celular. Ele foi liberado e os militares retornaram ao policiamento. Porém, uma mulher questionou o motivo da abordagem ao menino. Foram explicados os motivos, no entanto ela questionou a conduta dos policiais e, por isso, recebeu voz de prisão", diz a corporação. Confira a nota na íntegra:

"Enquanto seguia para a viatura, um homem tentou tirar a mulher do local, puxando-a pelo braço. Devido ao fato, ele também recebeu voz de prisão, porém desobedeceu e um dos policiais teve que utilizar técnicas de imobilização para algemá-lo. No momento em que era imobilizado e algemado, a mulher se jogou no chão e abraçou o suspeito para tentar impedir a ação policial. Ela foi algemada devido ao fato.

O uso das algemas deu-se pelo receio de fuga e perigo à integridade física própria ou alheia, por parte dos detidos ou de terceiros. Além disso, populares aglomeraram-se próximo à viatura e poderiam tentar interferir o andamento da ocorrência. Foi necessário o uso de spray de pimenta para afastar as pessoas e houvesse o mínimo de segurança para dar encaminhamento à ocorrência.

Com o apoio de outra viatura, o homem e a mulher foram encaminhados para a Delegacia Regional do município. Eles disseram aos policiais que eram casados e pais do menino abordado.

Qualquer pessoa que se sinta prejudicada pela ação dos agentes de segurança, pode procurar a Corregedoria da Instituição, munida de provas para que haja a devida apuração dos fatos".

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