Na última sexta-feira (6), a Justiça determinou o afastamento de um pastor da Igreja Batista da Praia do Canto, em Vitória, e exigiu que ele entregasse as chaves do prédio da instituição, assim como senhas de contas bancárias e outros documentos relevantes. A decisão veio depois que um grupo de 25 pessoas obteve junto à Convenção Batista Brasileira (CBB) um documento que atestava suposto "desvio de doutrina batista" por parte do pastor Usiel Carneiro e que, por isso, exigia que ele se afastasse. Quando Usiel se recusou a reconhecer a decisão da CBB, o grupo decidiu judicializar a questão.
A decisão levantou polêmica e diversos fiéis da igreja (que são maioria a apoiar a permanência do pastor Usiel) questionaram se um juiz de Direito poderia interferir em um assunto interno da instituição. O pano de fundo da disputa na Igreja Batista da Praia do Canto é ideológico: o grupo minoritário defende uma visão mais conservadora da das escrituras, mas a maioria aprova a abordagem progressista e inclusiva de Usiel.
A Gazeta ouviu especialistas para saber se a "Justiça terrena" pode ser acionada para resolver conflitos dentro de instituições religiosas. A resposta é: depende.
Alguns conceitos são importantes ressaltar: primeiro que o Brasil é um país laico e há uma separação entre a igreja e o Estado; segundo que a liberdade de crença é um direito fundamental, garantido pela Constituição.
Os especialistas ouvidos por A Gazeta concordam que o Estado (nesse caso, o Judiciário) não pode intervir em questões doutrinárias das igrejas. Ou seja, não pode atuar para modificar ou influenciar em nenhum sentido o sistema de crenças daquela religião.
"O Estado não pode se imiscuir nas questões doutrinárias da igreja, não pode questionar a fé. Não pode discutir quem está ideologicamente correto em determinada situação", explica a especialista em Direito Elda Bussinger. Contudo, não se pode permitir que haja violação de direitos, independentemente de ser dentro da igreja.
Por exemplo, uma determinada igreja não pode ter em sua doutrina maltratar crianças, porque esse ato é proibido pela lei brasileira.
"A igreja tem autonomia religiosa para colocar suas regras desde que não afete o ordenamento jurídico brasileiro", resume Aylton Dadalto, advogado e pós-graduado em Direito Público.
Da mesma maneira, a Justiça pode ser acionada caso ocorra algum crime dentro da igreja: desvio de dinheiro, agressão física ou verbal, ou qualquer outro previsto na legislação.
"O fato de haver separação (entre igreja e Estado) não significa que, se houver violação de direitos, não pode haver intervenção. O que não pode é o Estado deliberar, decidir, sobre questões que são ideológicas, doutrinárias, interna corporis da igreja", aponta Elda.
Assim como qualquer empresa, associação ou sindicato, igrejas têm regras que determinam seu funcionamento: o que é preciso fazer para ingressar, quem administra o dinheiro, como as decisões são tomadas, como casos de má conduta dos fiéis são tratados, como seus líderes são escolhidos, entre outras normas.
Essas regras, obviamente, também não podem ir contra a lei (não pode haver uma regra ilegal), mas elas podem ter sua aplicação garantida pela Justiça.
"As regras internas têm que ser obedecidas. Se os membros da comunidade fizeram uma acordo, aderiram a um acordo ao se tornarem membro, o que o Estado vai analisar é se o acordo foi violado", explica Elda.
É como em um condomínio. Imagine que os moradores não possam fazer barulho após determinado horário definido na convenção do condomínio. Se algum deles faz isso reiteradamente, os moradores que se sentirem incomodados ou a administração do condomínio podem acionar a Justiça para fazer valer o que está na convenção.
"A igreja é uma entidade privada, não é pública, tem as normas dela. Desde que não afete direitos fundamentais, ela pode criar suas próprias normas internas e alguém que se sentir lesado pode entrar na Justiça", esclarece Dadalto.
Muitas igrejas evangélicas são geridas por assembleias, ou seja, decisões importantes são tomadas em votação pelos membros daquela congregação. Vence a proposta que tiver maioria dos votos. Contudo, ainda assim, caso a pequena parte se sinta violada, também pode acionar a Justiça usando o chamado recesso de minoria.
"Um grupo pode se sentir prejudicado e pode ter direito de acionar, de contestar a decisão que passou pela maioria, mas que prejudica algumas pessoas", aponta o professor de Direito da FDV Paulo Neves Soto.
Ele avalia que nem sempre o grupo minoritário terá sucesso no processo, já que a mudança na decisão de uma maioria na igreja pode significar uma invasão na autonomia daquela instituição, mas cada caso será analisado pelo juiz.
Paulo cita o exemplo de um clube esportivo: se a maioria dos membros do clube decidir por expulsar alguns deles em decisão por assembleia, ainda que tenham essa prerrogativa, as pessoas expulsas podem questionar se houve motivo real para aquela expulsão, se a expulsão seguiu o rito administrativo que consta no estatuto ou se houve algum abuso cometido pela maioria naquela ocasião.
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