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Privatização de praias: como PEC sobre terrenos de marinha impacta o ES

Privatização de praias: como PEC sobre terrenos de marinha impacta o ES

Proposta de Emenda Constitucional prevê transferência de áreas da União para Estados, municípios e iniciativa privada; saiba mais

Publicado em 3 de junho de 2024 às 20:46

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O município de Vitória concentra o maior volume de imóveis em terreno de Marinha
O município de Vitória concentra o maior volume de imóveis em terreno de Marinha. (Marcelo Prest/Arquivo AG)

A cobrança de taxas de terreno de marinha sempre foi motivo de muito debate, particularmente no Espírito Santo, um dos Estados com grande número de áreas sob domínio da União. Agora, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em discussão no Senado Federal traz a possibilidade de transferência de propriedade, medida que, na visão de alguns segmentos, abre caminho para a privatização de praias, ou seja, o acesso à faixa litorânea do país poderia ficar restrito. 

Em todo o litoral capixaba há terras da União, mas boa parte se concentra em Vitória, segundo aponta Gilmar Custódio, sócio da Custódio e Schmidt Advogados e vice-presidente jurídico da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário do Espírito Santo (Ademi-ES). Na Capital, de 70 a 80% dos imóveis se enquadram como terrenos de marinha. 

São assim classificadas as áreas que ocupam uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Portanto, até áreas de aterro, e hoje mais distantes do mar, também podem ser consideradas terrenos de marinha e são ocupadas por imóveis públicos e privados. 

Gilmar Custódio lembra que o terreno de marinha é um instituto criado em 1946 para proteção das costas, mas que remonta ao período do Brasil Colônia. Portanto, para ele, uma legislação ultrapassada e que precisa ser revista.

Privatização de praias: como PEC sobre terrenos de marinha impacta o ES

Pela legislação atual, as áreas pertencem à União, que recebe taxas anuais, como uma espécie de aluguel, de quem ocupa o terreno. A PEC 3/2022 propõe transferir os imóveis para Estados, municípios e entes privados, que hoje não detêm a propriedade, mas apenas o direito à ocupação. 

O vice-presidente da Ademi-ES faz uma analogia. "Imagine que os terrenos sejam um bolo, que vai ser dividido em quatro pedaços. A União fica com o que já é dela, e é a maior parte, e as outras três vão repartir."

Pela proposta, a União segue com domínio das áreas em que estão instalados serviços públicos federais, inclusive os destinados à utilização por concessionárias, as unidades ambientais e as terras ainda não ocupadas, enquanto Estados, municípios e iniciativa privada passariam a ter direito à propriedade do que ocupam atualmente.  

Na avaliação de Gilmar Custódio, um dos avanços dessa proposta é a possibilidade de financiamento para imóveis situados em terrenos de marinha que estão sob regime de ocupação, isto é, 100% de propriedade da União. Como o comprador não tem como dar o imóvel como garantia, por não ser o dono, ele não consegue financiar. "A aprovação da PEC vai fomentar o mercado porque a maioria das transações, em torno de 90%, é realizada com financiamento", pontua. 

Privatização

Questionado sobre o risco de privatização das praias, Gilmar Custódio assegura que, em nenhum momento, esse aspecto é considerado na PEC. "Diversos terrenos estão na mão de particulares, mas, para construir ali, precisa se submeter à legislação do município, à legislação ambiental e, se passar por esses dois crivos, vai ser autorizado a construir em algo dele. Mas essa PEC não altera em nenhum aspecto a denominação. A legislação que trata dos bens públicos, como as praias, não modifica. Elas continuam sendo bens do povo."

Para o advogado imobiliarista Renato Risk Minassa, o problema não está diretamente na PEC, mas na possibilidade que ela cria ao autorizar a transferência de propriedade de terrenos de marinha. Hoje, as praias são consideradas bens públicos federais. Mas, se houver a transferência, deixa de ser inconstitucional o PL 4.444/2021 — este, sim, prevê a outorga de 10% de áreas de praias, segundo o especialista, e está em discussão na Câmara Federal. 

Minassa também considera que a legislação relacionada aos terrenos de marinha precisa de revisão, com redução gradativa até a eliminação total das cobranças, mas não vê a necessidade de transferência de imóveis. "Acredito que o ponto é este: a PEC deveria reduzir a dependência do poder público a essa receita. Hoje, não se abre mão disso porque a receita é grande." O advogado lembra que, há pelo menos uma década, o valor arrecadado apenas na Grande Vitória era da ordem de R$ 200 milhões. 

Advogado e professor aposentado da Ufes, Luiz Fernando Schettino, do Departamento de Oceanografia e Ecologia, defende mudança na legislação sobre os terrenos de marinha, mas adverte sobre a forma como tem sido conduzida a discussão da PEC, de maneira intempestiva e sem analisar os impactos ambientais que podem haver se, no futuro, a liberação de construções avançar sobre o litoral. 

"Do ponto de vista ambiental, temos que pensar no que é muito caro para nós: o litoral é onde está o manguezal, a restinga, onde estão os pescados, as comunidades tradicionais", pontua Schettino. 

Ele acrescenta que, se essas áreas forem afetadas, pode haver redução da biodiversidade, contribuindo, inclusive, para o aumento no nível do mar. "A privatização pode impactar esses ambientes, que são muito sensíveis a qualquer mudança. E essas áreas litorâneas servem como mitigação das mudanças climáticas."

Para o professor, os argumentos a favor da PEC, que sugerem geração de emprego e outros benefícios com a transferência dos terrenos de marinha, não se sustentam porque os prejuízos seriam maiores que qualquer eventual vantagem. 

"Estamos no meio de uma catástrofe climática (no Rio Grande do Sul) e essas mudanças propostas podem trazer consequências enormes nessa área que as pessoas nem imaginam. A PEC é uma questão complexa, envolve tantas coisas e penso que é preciso resolver o problema dos terrenos de marinha, mas não da maneira que estão propondo. Resolver é importante, mas não trazendo um impacto enorme socioambiental", conclui. 

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