Para ter o domínio pleno dos imóveis de terrenos de marinha, os moradores vão precisar comprar a parte que cabe à União. É o que prevê a Proposta de Emenda à Constituição 03/2022, também chamada de PEC das Praias, e que tramita no Senado Federal, conforme já havia antecipado a colunista Vilmara Fernandes ao tratar do impacto no bolso com a mudança na legislação. Mas ainda não se sabia o custo dessa operação. Levantamento de A Gazeta aponta uma estimativa de cerca de R$ 4 bilhões no Espírito Santo, isto é, esse é o valor contabilizado que precisará ser desembolsado na transferência de todas as propriedades pelos entes privados para o governo federal.
Na Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão federal ao qual cabe a gestão dos terrenos de marinha, há 51.814 imóveis cadastrados nesse perfil no Espírito Santo. Todos os municípios do litoral, mais Cariacica, são abrangidos. Contudo, a concentração se dá em Vitória, com mais de 43 mil imóveis. A área ocupada é 81,29 quilômetros quadrados.
Do total de imóveis, 28.687 estão no regime de aforamento. Isso significa dizer que 17% do valor desses bens pertencem à União e é sobre esse índice que incidem, atualmente, as taxas de marinha cobradas todos os anos dos foreiros. Apesar de maior quantidade, o valor correspondente, na ordem de R$ 741 milhões, é mais baixo para que os moradores tenham domínio pleno da propriedade.
Já em ocupação são 23.517 imóveis. Esse regime indica que 100% do domínio é da União. Para ter a posse total desses imóveis, o valor calculado hoje é de R$ 3,55 bilhões.
O fim das taxas de terreno de marinha é uma discussão antiga, que afeta particularmente o Espírito Santo, mas a PEC não prevê a simples extinção da cobrança. Estabelece a transferência onerosa, ou seja, para garantir a propriedade, foreiros vão ter que pagar 17% do valor do imóvel à União e os ocupantes, 100%.
"Importante deixar claro que não vai se cobrar o valor de mercado do imóvel. O ocupante ou foreiro já tem domínio útil e vai apenas pagar pela remição (quitação) ou consolidação da propriedade plena do imóvel. E tem legalmente o direito de deduzir do valor o que pagou nos últimos cinco anos a título de foro", ressalta Paulo Neves Soto, professor doutor da FDV. Ele ainda lembra que, para garantir a remição, não pode haver inadimplência das taxas junto à SPU.
Caso a proposta seja aprovada, conforme a redação atual, a União tem o prazo de até dois anos para efetivar todas as transferências, deixando margens para interpretação de que todos serão obrigados a comprar sua parte.
"A PEC, nesse ponto, deveria ser melhor discutida porque estabelece prazo, mas não a consequência. Seria o mesmo que estabelecer uma obrigação sem penalidade para o descumprimento", observa o advogado Gilmar Custódio, vice-presidente jurídico da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário do Espírito Santo (Ademi-ES).
Para o advogado, que é favorável à proposta, ou a redação da PEC deve ser melhorada, ou, no final do texto, deve-se acrescentar que haverá regulamentação posterior. A lei, sustenta Gilmar Custódio, não tem como falar tudo e pode ter pontos mais detalhados em outros instrumentos legais.
Apesar de não haver essa previsão na PEC, Gilmar Custódio lembra que a lei 13.240/2015, que trata de alienação de imóveis em terreno de marinha, tem um dispositivo em que as pessoas que não quiserem adquirir o domínio pleno continuam submetidas ao regime de ocupação ou aforamento. Ele acredita que o mesmo poderá ser aplicado no caso de aprovação da proposta de emenda constitucional.
O advogado afirma ainda que, no caso de um prédio, um morador pode decidir vender e o vizinho, não. A decisão de um não interfere na de outro, conforme a legislação vigente. Para Gilmar Custódio, a situação deverá ser mantida com a PEC.
Vale lembrar que a transferência onerosa está prevista apenas para entes privados, desde que não sejam imóveis de interesse social. Também não haverá custo para Estados e municípios, pois, para esses, haverá cessão por parte da União. O número de imóveis ocupados por entes públicos não chega a 200 no Espírito Santo – a maioria dos que estão em terreno de marinha são particulares.
A PEC está no centro de uma polêmica. Críticos à proposta apostam em impacto social e ambiental, inclusive com risco de privatização de acesso às praias, caso seja aprovada. A proposta não trata exatamente de limitar o acesso à costa marítima, mas alguns setores avaliam que abre caminhos para restringir a circulação das pessoas em áreas litorâneas, se passarem a ser controladas por investidores particulares.
A PEC trata de terrenos de marinha, áreas da União que ocupam uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Portanto, até áreas de aterro – hoje mais distantes do mar – também podem ser consideradas terrenos de marinha e são ocupadas por imóveis públicos e privados.
Atualmente, há dois regimes que disciplinam esses terrenos: por aforamento, pelo qual entes que ocupam a área (foreiros) detêm 83% e a União, 17%; e por ocupação, em que 100% da área é de domínio federal.
Para os foreiros e os ocupantes, há uma cobrança anual, como uma espécie de aluguel, sobre o valor da "terra nua" (sem benfeitorias) do percentual que cabe à União. No aforamento, a taxa de marinha é de 0,6% sobre a propriedade federal, enquanto, no outro regime, são 2% pela ocupação do terreno. Há, ainda, uma cobrança de 5% (laudêmio) em casos de transferência.
Do que está descrito no texto da PEC, o ponto que causa divergências é a previsão de transferência de propriedade dos terrenos da União, que ficaria apenas com o domínio das áreas em que estão instalados serviços públicos federais, inclusive os destinados à utilização por concessionárias, as unidades ambientais e as terras ainda não ocupadas. Nesses casos, o acesso a esses terrenos continua público.
Pela proposta, Estados, municípios e iniciativa privada (empresas e pessoas) passariam a ter direito à propriedade do que ocupam atualmente. A transferência das áreas será gratuita no caso das ocupadas por habitação de interesse social e por entes públicos, e onerosa nos demais casos.
Além disso, os moradores também ficariam livres da cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmio.
O texto não fala em privatização. Mas, segundo especialistas, ao permitir a transferência dos terrenos para outros entes, a legislação que prevê a proteção da costa fica fragilizada.
A SPU destaca em nota que, embora a PEC não privatize as praias, a forma como está formulada pode dificultar o acesso público. "Especificamente, ao retirar o domínio sobre a faixa de segurança, que compreende os primeiros 30 metros a partir do fim da praia, abre-se a possibilidade de ocupação sem as restrições atuais. Isso poderia limitar o acesso das pessoas às praias", ressalta.
Para Gilmar Custódio, no entanto, a proposta é extremamente benéfica, inclusive possibilitando que municípios façam a regularização fundiária de bairros periféricos, como a região da Grande São Pedro, em Vitória. "Lógico que há pontos de discussão, mas é possível fechar eventuais brechas deixadas pela PEC e aprová-la", defende.
A proposta ainda tem um longo prazo de tramitação no Senado. A despeito da importância do assunto, a maioria da bancada federal capixaba prefere não comentar.
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