Antinaturais, mas cada vez mais frequentes, crimes que ocorrem no seio familiar chocam a sociedade. Nesta semana no Espírito Santo a questão pareceu mais presente do que nunca, em especial com o crime praticado por um pai contra seus três filhos e esposa, seguido pela própria morte, em São Domingos do Norte, município ao Noroeste do Estado, na madrugada desta terça-feira (15). Sem causa confirmada até o momento, o que se sabe é que Flávio Sandro Olmo, de 42 anos, enfrentava um processo de separação.
Além desse episódio, foram noticiados pelo menos outros quatro nos últimos dias, como o caso do pai que atirou no filho em Cariacica, na noite de domingo (13); o caso do homem suspeito de atirar contra o irmão em Barra de São Francisco na tarde desta terça-feira (15); o do homem que tentou matar a companheira e cometeu suicídio em seguida, nessa segunda-feira (14), em Mantenópolis; e o caso do filho que confessou ter mandado matar o pai em Afonso Cláudio.
Ao pensar em tragédias como essas, logo vários questionamentos são feitos, entre eles:
Para tentar responder a essas perguntas, a reportagem conversou com advogados, com um psicólogo credenciado na Polícia Federal e com uma assistente social mestre e doutoranda no tema.
Na análise da assistente social Solisa Aldy Tavares Brito, que concluiu mestrado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) tratando de homicídio em família, e que agora amplia os estudos em doutorado na Suécia, várias são as teorias que tentam explicar o porquê de acontecerem crimes no ambiente familiar.
Uma das teorias envolve justamente os transtornos e doenças mentais. "Uma delas parte do princípio da psicopatologia, dizendo que existe uma doença latente nas pessoas que cometem esse tipo de crime, o que é muito estudado pela psicologia clínica. Mas existem teorias que têm mais o viés social, que acabam demonstrando que outros fenômenos além de uma doença podem estar na origem dos crimes. Acredito muito que é uma combinação de fatores, que envolve doença e também ciúmes e sentimentos de poder e posse, essa ideia de ser o dono da outra pessoa", iniciou.
Para Solisa, a possessividade e o desejo de poder são questões frequentes. "São pais que consideram que filhos são posses e assim podem decidir o que fazer com eles, maridos e esposas que acabam também matando por ciúmes. Percebi que esse tipo de crime acontece quando a pessoa acredita que não tem mais nada a perder, então não faz diferença matar a pessoa e até se suicidar também", acrescentou.
Do mesmo modo, para o Doutor em Direitos e garantias fundamentais, professor de Direito Penal e advogado criminalista Israel Domingos Jorio, circunstâncias como ciúme e posse podem estar presentes em tragédias familiares.
"O que há com frequência são crimes passionais, causados por descontrole de emoções ou sentimentos. Dificilmente a intenção é atingir os filhos diretamente, por conta de algo que ele tenha feito, à exceção de pessoas que se veem cansadas das atribuições da paternidade. O mais comum é cometer esse atentado bárbaro contra os filhos para atingir a esposa ou o companheiro. Muitas vezes o filho é morto para trazer sofrimento ao parceiro", afirmou.
Segundo o jurista, para analisar os crimes cometidos no âmbito familiar, deve-se fazer uma distinção.
"Não que todo doente seja um assassino em potencial, mas existe a possibilidade da pessoa que tem uma doença psiquiátrica, que interfere na capacidade de autocontrole, ter um rompante de violência e praticar um ato do qual se arrependerá pelo resto da vida e que não teria feito em outro momento. É, por exemplo, o caso de quem, em surto, mata todo mundo e depois fica desesperado e acaba tirando a própria vida", disse o advogado.
Quando considerado o crime por parte de alguém com transtorno mental, em regra, é aplicada uma medida de segurança a quem praticou o ato, em vez da prisão. A questão deve ser avaliada pela autoridade policial.
Um fato a se considerar nesta análise é então que nem sempre crimes brutais dentro de uma família são explicados por doenças ou transtornos. Para o psicólogo especialista em Avaliação Psicológica e mestre em Psicologia, credenciado na Polícia Federal para aptidão psicológica para o porte de arma, Leonardo del Puppo Luz, dizer que a psicopatologia seja o desencadeador desses tipos de crimes é uma das respostas padrão que a sociedade tenta dar.
Para ele, em tragédias familiares, fica evidente a brutalidade e a quebra das regras de afeto e amor atribuídos à família. "É claro que os transtornos mentais graves como a esquizofrenia e outros, são de fato responsáveis pela alteração da realidade propriamente dita. Em regra, eles confundem a vida mental a ponto de a pessoa deixar ou relativizar a noção de real. Assim, eles alteram os costumes e os valores sociais da família", ponderou.
Para Luz, a família vem sofrendo alterações com o tempo e vem sendo afetada por novos conflitos e situações como abuso de álcool e drogas, banalização do afeto e do carinho recíproco e perda da noção de constituição da família como algo necessário. Somados a esses fatores sociais, ainda há, neste momento, uma crise sanitária provocada por uma pandemia, que pode ter sido um desagregador para vários núcleos familiares. "Assim, podemos ter um forte desequilíbrio que pode chegar a extremos inimagináveis", disse.
Na situação atual da sociedade, o psicólogo acredita que a desesperança frente às dificuldades impostas, possam contribuir para casos graves. "A família, principalmente para figura masculina, é vista como algo a ser cuidado a qualquer custo. O sofrimento com a falta de condições de manter pode levar pessoas, algumas já com históricos de fragilidade mentais, outras por questões mais superficiais, a entenderem que o fracasso ou a incapacidade de cuidar da família seja uma questão insuperável e que produz extremo sofrimento psíquico insuportável", apontou.
Sobre o amor incondicional entre os membros de uma família, o especialista diz que isso não é um consenso em todas as formações e que a questão afetiva entre os membros da família é uma construção social, não necessariamente amor inato.
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, de forma unânime, há sim sinais que podem ser identificados antes de uma ação de violência extrema, sendo que esta não costuma acontecer "do nada". Os trágicos casos, na maioria das vezes, seguem um padrão e é possível ficar atento para evitar o pior.
Segundo o advogado criminal, professor de Direito Penal e presidente da Comissão da advocacia criminal da OAB-ES Anderson Burke, por vezes, quando é o pai que comete o crime, ele mata somente os filhos. Apesar disso, a motivação por trás é de punir a mulher.
"É como o famoso caso ocorrido no ano 2000, do comerciante Marcos Itiberê Rodrigues de Castro, que matou os dois filhos em Vila Velha e os colocou em um armário. O caso já foi finalizado na Justiça e seguiu o padrão machista. Mas antes desses casos há sinais, entre eles a violência psicológica e moral, com ameaças, depois violência física, até chegar ao ponto de a mulher, por exemplo, estar querendo sair do relacionamento ou começar outro e o homem vê que não tem volta e toma a atitude extrema", relatou o advogado.
O professor de Direito Penal Israel Jorio concorda. Para ele, é muito difícil que crimes praticados com violência extrema sejam cometidos por pessoas que não deram sinais anteriores, sendo que o mais normal é que haja um comportamento agressivo prévio. Geralmente, o criminoso já agrediu pessoas da família fisicamente, já fez ameaças de morte, e até mesmo promessas como 'vou matar todo mundo e me matar', ou 'se te pego com outro, ou se você terminar comigo, eu acabo com sua vida'.
O jurista explica que essas pessoas têm um padrão de violência física ou verbal. "É o que acontece no feminicídio, o sujeito vai aumentando a escala da violência. Primeiro agride com tapas, depois com socos, faca, revólver. Nem sempre a família acredita que a pessoa pode chegar a tanto, mas os indícios costumam aparecer", destacou.
Também para a assistente social Solisa Brito, a violência doméstica é um processo na maioria das vezes, ou seja, não acontece de uma vez. "Aquelas pessoas já vêm sofrendo violência por algum tempo, o que acaba culminando na morte de um ou mais membros. Há sinais que são dados pelos agressores e também pelas vítimas, que, tanto a sociedade civil, como familiares, amigos e vizinhos, percebe, como os serviços públicos também, mas não agem rapidamente ao ponto de conseguir fazer algum tipo de intervenção antes que seja tarde", afirmou.
Segundo Solisa Brito, muitos dos casos envolvem registros policiais prévios, denúncias de violências e várias ocorrências, até mesmo passagens por hospitais devido a ferimentos. "Algumas vítimas já têm passagens por abrigos ou são crianças que relatam na escola. Esses sinais são percebidos muitas vezes pela sociedade civil, que muitas vezes 'não metem a colher'. Hoje, no entanto, se diz que sim, que se deve interferir em casos de violência doméstica, mas muitos ainda não se sentem à vontade para isso, achando que deve ser resolvido em família", afirmou.
Para a doutoranda, a questão da romantização da família, acreditando sempre que é o lugar de amor, em que todas as coisas positivas podem acontecer, é de fato ilusória. "Existe uma discussão enorme que demonstra que é neste seio que podem ocorrer as maiores formas de violência. Não é apenas o lugar onde as coisas boas acontecem, é uma estrutura social, que pode ser afetada pela pandemia, pelo desemprego e outros problemas", finalizou.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta