A Câmara dos Deputados deve votar, nesta quarta-feira (5), o projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional (LSN), resquício da ditadura militar, mas que tem sido usada, com frequência, contra críticos e apoiadores do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
A proposta é que dispositivos da legislação, que tem como objetivo proteger a ordem social e política, sejam revistos e inseridos no Código Penal, como “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”. Alguns podem ser retirados, como é o caso do que pune aqueles que praticam calúnia ou difamação contra o presidente da República.
Para especialistas consultados por A Gazeta, é unânime que a Lei de Segurança Nacional está defasada e viola o regime democrático, já que permite perseguição política. Há, contudo, uma preocupação de que as mudanças na legislação aconteçam sem o debate necessário e tragam riscos para a sociedade, entre eles à liberdade de expressão.
O projeto tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados. Com isso, a votação é realizada diretamente no plenário, sem necessidade de passar pelas comissões, como seria o rito natural.
Entenda abaixo o que está sendo discutido:
A Lei de Segurança Nacional (LSN) foi aprovada em 1983, durante a ditadura militar, e estabelece crimes contra a segurança nacional, ordem política e social.
Na época, ela foi uma espécie de desdobramento da Doutrina de Segurança Nacional, que tinha como objetivo silenciar críticas ao governo e perseguir inimigos políticos da ditadura, conforme explica o cientista político e professor da Universidade Federal de Pernambuco Antônio Lucena.
Entre os crimes previstos pela Lei de Segurança Nacional está o de caluniar ou imputar fato ofensivo ao presidente da República, os presidentes do Senado, da Câmara e do Supremo Tribunal Federal, determinando pena de até quatro anos de prisão.
Esse dispositivo é um dos mais criticados atualmente, já que, segundo o professor da FGV Direito Rio Wallace Corbo, restringe a liberdade de expressão, direito garantido pela Constituição de 1988.
“A base do estado democrático de direito é a capacidade de crítica, quando você criminaliza isso, você pune as pessoas por expressarem opiniões contrárias ao sistema vigente. Isso acontecia na ditadura, mas é inconcebível em uma democracia”, afirma.
A LSN já foi usada para abrir inquéritos em outros governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, em 2000, contra integrantes do Movimento Sem Terra. Mas foi na administração de Bolsonaro que essas investigações aconteceram com mais frequência.
Segundo levantamento feito pela Folha de São Paulo, pelo menos 20 pessoas, entre eles críticos e apoiadores do presidente, foram alvo de inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional.
Um deles é o influencer digital Felipe Neto, que foi alvo de um inquérito da Polícia Civil do Rio de Janeiro após chamar Bolsonaro de genocida nas redes sociais. A investigação foi aberta com base no crime de calúnia contra o presidente, previsto na Lei de Segurança Nacional. O inquérito, contudo, foi suspenso.
O colunista da Folha de São Paulo Hélio Schwartsman também foi investigado pelo mesmo crime. Ele escreveu um artigo, em julho de 2020, dizendo torcer pela morte de Bolsonaro por Covid-19. Schwartsman foi intimado pela Polícia Federal a depor, mas o inquérito foi suspenso pela Justiça, que alegou que se tratava de uma manifestação crítica legítima.
Outro alvo da LSN é o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ), preso em fevereiro por divulgar um vídeo em que ataca ministros do Supremo Tribunal Federal e defende a ditadura militar.
O parlamentar é acusado de coação e de tentar impedir o funcionamento do Judiciário, crimes previstos na Lei de Segurança Nacional.
Para Lucena, o uso da Lei de Segurança Nacional tem extrapolado a defesa e proteção do Estado e sido usado para impedir que opositores do governo expressem opinião ou façam críticas.
“Não existe nada mais antigo do que criticar um presidente, um político, um governo. As pessoas precisam ter a liberdade de manifestação garantida. A forma como a Lei de Segurança Nacional é usada ultrapassa essas barreiras. A legislação não pode ser usada para intimidar pessoas, porque isso é uma medida autoritária”, avalia.
O projeto, que está sob relatoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), prevê a revogação da Lei de Segurança Nacional e a incorporação de alguns dispositivos no Código Penal, sob o título de crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Entre eles está a inclusão de pena de até cinco anos de prisão para quem espalhar desinformação durante as eleições. Há também punição para prática de violência política, insurreição e atentado ao direito de manifestação.
Os crimes de calúnia e difamação contra o presidente da República, que atualmente se encontram na LSN, não devem ser incluídos no Código Penal.
Na visão do professor e mestre em Direito Constitucional Dalton Morais, a reforma da Lei de Segurança Nacional é necessária, mas precisa ser feita por meio de um debate mais profundo com a sociedade civil “para não correr risco de criar tipos penais que comprometam a liberdade de manifestação das pessoas”.
Dalton cita a proposta de tipificação no Código Penal do crime de insurreição, com previsão de pena de quatro a oito anos de prisão. Na avaliação, o termo é amplo e pode colocar em risco atuações de movimentos na sociedade.
“É preciso debater os tipos penais que vão ser estabelecidos para não se tornar tudo aquilo que não queremos, um instrumento de perseguição a quem exerce a liberdade de expressão, de crítica”, defende.
Corbo corrobora a avaliação e afirma que além de deficiências no conteúdo, o projeto de lei vem em um momento conturbado, que não é propício para discussão.
“Estamos vivendo em um país dividido e uma lei importante como essa exige um momento político, social e jurídico mais sereno. Preocupa-me que a aprovação a toque de caixa gere criminalizações que prejudiquem a liberdade e a atuação de movimentos sociais. Precisamos ter calma nesse momento”, finalizou.
O projeto está pautado para ser votado na quarta-feira. Por causa do regime de urgência, a votação será diretamente no plenário, sem necessidade de passar por comissões especiais. Se aprovada, a proposta vai para o Senado para uma segunda votação. Se houver alterações, o texto volta para a Câmara. Caso contrário, ele é enviado para sanção ou veto do presidente da República.
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