Em visita ao Espírito Santo nesta sexta-feira (19), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino fez a defesa da atuação da Corte em temas que têm tomado conta de discussões em Brasília, mas com repercussões até fora do país. Um dos mais recentes embates é com o bilionário Elon Musk, dono da rede social X (antigo Twitter), que foi incluído entre os investigados do Inquérito das Milícias Digitais. "Não estamos buscando debate político", assegura Dino, ao se manifestar sobre esse caso.
O ministro, que participou da palestra de encerramento da Conferência Estadual promovida pela secional capixaba da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-ES), também falou sobre a tensão entre o STF e o Congresso Nacional, que tem aprovado leis num movimento contrário a decisões do Supremo. Nesta semana, por exemplo, o Senado aprovou a proposta que coloca na Constituição a criminalização de porte e posse de drogas, em reação ao julgamento da Corte que pode descriminalizar a maconha para uso pessoal.
Embora ressalte que, seja Legislativo, seja Judiciário, cada qual tem seu papel e que algumas vezes há falsas alegações de retaliações, Dino avalia que o diálogo entre as partes é importante e pode favorecer a retomada da harmonia entre os Poderes. Confira alguns trechos da entrevista:
Como o senhor avalia a proposta da OAB de elaborar uma PEC para apresentar ao Congresso para garantir a sustentação dos advogados nos tribunais brasileiros, especialmente no STF, diante dos últimos impasses?
Temos um debate sempre sobre como o princípio do contraditório e a ampla defesa, previsto no artigo 5º inciso 55 da Constituição Federal, se adapta às múltiplas realidades dos tribunais. Sabemos que julgamos dezenas de milhares de processos por ano e, por isso, é sempre necessário equilibrar essas garantias que são essenciais, não há dúvidas, com a necessidade de imprimir velocidade aos julgamentos. Tenho recebido pleitos de advogados nessa direção e creio que, independentemente da PEC, é possível achar uma solução de meio-termo no próprio Supremo, que garanta que essa contenda seja superada e nós possamos fazer o principal: resolver os problemas que estão ali tramitando.
O senhor intimou a presidência da República, a Câmara e o Senado a respeito de suposto descumprimento da decisão que proíbe o Orçamento Secreto. Quais são os próximos passos?
Eu herdei a relatoria dessas ações que, originalmente, eram da ministra Rosa Weber. Houve um peticionamento de entidades, que informaram que havia um descumprimento da liminar. Achei que havia pelo menos possibilidade na argumentação que foi trazida. Então, exatamente em nome do direito das partes, eu notifiquei todas as partes, não só os réus, os executores desses mecanismos orçamentários, assim como o autor, o PSOL. São 15 dias, e as partes vão prestar esclarecimentos e o ideal é que possamos definitivamente superar essas dúvidas e garantir uma execução orçamentária que seja transparente, ágil e que os recursos consigam chegar ao principal, que é à casa, ao lares de todos os brasileiros. Minha ideia inicial é colher esses esclarecimentos e, de repente, quem sabe, fazer uma audiência de conciliação par esclarecer os fatos.
A intimação pode tensionar ainda mais a relação com o Congresso?
Não vejo o porquê, na medida em que cada um cumprindo o seu papel. Não há nenhuma razão para nós deixarmos de considerar que temos dois pilares na relação entre os Podres. Um é o da harmonia e tem que ter tranquilidade, ponderação, sempre. O outro é o da independência; cada um tem que fazer o seu papel. Neste caso, são ações judiciais que lá tramitam, propostas por um partido político, ou seja, não é uma iniciativa do Judiciário. É um partido político, um ator do processo político, que demandou o Supremo. E cabe ao Supremo, obviamente, responder a essa demanda.
E como restabelecer a harmonia entre os poderes diante dessa tensão?
Sobretudo eleger isso como um objetivo prioritário. Hoje, nós temos um clima em que tudo se transforma em uma ideia, às vezes falsa, de retaliações recíprocas. Temos que considerar que isso é, em si, inconstitucional. O poder sob a ótica do cidadão é um só. O cidadão não é municipal, estadual, federal. Não é do Judiciário, do Legislativo, do Executivo. O cidadão é destinatário de serviços públicos, de prestações de direitos e esse é o centro da preocupação que deve justificar a ideia de harmonia.
Venho de uma experiência intensa, longa, de 18 anos na política, governei o Estado (Maranhão), fui deputado, senador, fui juiz antes e, por isso, tendo essa experiência empírica, prática, tenho procurado, exatamente, ajudar para que haja esse clima. Repito: que cada um cumpra a sua função. Nós não podemos ter prevaricação, não podemos ter uma situação em que, em razão de insatisfações, alguém deixe de cumprir o seu papel. Se há um processo, o Judiciário tem que julgar, não pode jogar na gaveta. Ao mesmo tempo, tem um diálogo possível, acho que essas soluções de conciliação são indicadas para buscar esse equilíbrio.
O senhor considera que a aprovação da PEC das drogas no Senado foi uma afronta ao STF?
De modo algum. É uma atividade legislativa. Assim como cabe ao Supremo julgar as ações que lá estão, cabe ao Congresso Nacional — Câmara e Senado — votar as normas, entre as quais, emenda constitucional, projetos de lei. Se você me perguntar o que eu acho da proposta, não me cabe opinar, eu não sou mais parlamentar. Um dia, quem sabe, eu tenho que julgar, então eu não tenho opinião. Do ponto de vista da competência, é claro que o Congresso pode legislar. Agora, se vai fazer bem ou mal, é um assunto que a sociedade tem que avaliar que, na verdade, é o principal juiz dos políticos (eleitores e eleitoras). Depois, quem sabe, se for o caso de alguém demandar o Supremo, aí o Supremo decide se a solução normativa encontrada foi adequada.
Qual a importância de uma conferência como a realizada no Espírito Santo?
Acho que é muito importante, neste momento em que há muita tensão, provocada muito em razão de um fenômeno novo nas nossas vidas, que é o uso intensivo de tecnologia, que prestigiemos essa ideia da conversa olho no olho porque às vezes as telas não conseguem transmitir adequadamente as convicções. E, às vezes, as pessoas criam distâncias entre as suas opiniões que, na verdade, nem existem, mas o meio acaba levando à chamada polarização. Então, acredito, para homenagear aqui um poeta, compositor, artista da terra, o cantor Roberto Carlos, eu sou meio “à moda antiga”: acredito que a gente deve dar flor, participar de palestras e acho que essa é a lição principal desse evento e eu cumprimento a OAB.
O senhor pediu destaque numa ação do WhatsApp com relação a suspender ou não os serviços e há essa crise criada com o empresário Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes. Este episódio tem ganhado força para um lado político do nosso país. Gostaria de saber como está vendo essa questão e, principalmente, esses ataques às medidas que já foram tomadas?
Esse é um debate internacional, não é um debate só brasileiro. Temos bloqueios de contas de internet nos Estados Unidos. A bem da verdade, em razão dos ataques ao Capitólio, similares ao 8 de janeiro, há dezenas de milhares de contas de internet bloqueadas. Agora mesmo, esta semana, houve decisões do poder judiciário da Índia. A União Europeia tem uma posição muito clara sobre isso.
Então, é uma tecnologia nova e claro que as empresas buscam uma maximização dos lucros, ou seja, exercer suas atividades da forma mais enfática possível para buscar lucratividade. Isso é legítimo, porém não pode suprimir a ideia de leis, a Constituição. Isso vale para os Estados Unidos, vale para a União Europeia, tem que valer para o Brasil. Isso é censura? Não! Nenhum de nós pode, por exemplo, fazer apologia à violência contra a mulher. Isso é crime! Alguém pode fazer apologia ao racismo ou ser racista? Não, é crime! Alguém pode estimular a exploração sexual de uma criança? Não, isso é crime. E ao dizer que esses discursos não são permitidos, isso é censura? Isso tolhe a liberdade? A liberdade é cada um pode fazer o que quiser, a hora que quiser? Claro que não!
Então, o que precisamos hoje é avançar na legislação que temos, que é de 2014. O marco civil da internet já tem 10 anos. Dez anos, em tecnologia, sobretudo nesses tempos que vivemos, é muito tempo. Então, é necessário atualizar essa legislação e o Supremo tem ações judiciais. Volto ao argumento: não é o Supremo que inventa ações. Das ações que lá existem, nenhuma foi iniciada por um ministro do Supremo, o que é proibido. Então, alguém entrou com ação.
Neste caso do marco civil da internet, no que se refere à interpretação do artigo 19 e o artigo 21, há duas ações: uma sob a relatoria do ministro (Dias) Tófoli, outra sob relatoria do ministro (Luiz) Fux e, em algum momento, essas ações terão que ser julgadas de maneira que acredito que deve haver uma concertação, de atuações legislativas em primeiro lugar, o mais importante neste caso para atualizar a lei, e também, quem sabe, o próprio Judiciário para adequar essa ideia de que liberdade não é vale tudo e, ao mesmo tempo, permitir o bom funcionamento das redes.
Neste caso concreto, em que pedi destaque, foi para exatamente viabilizar o aprofundamento do debate, dada a importância do tema na medida em que era uma decisão judicial voltada ao combate ao tráfico de drogas. Juízes de Estados diferentes buscando medidas, visando a elucidar um caso de tráfico de drogas e investigar quadrilhas. O debate é: este objetivo é importante? É. Ele é legal? Claro que é. É de interesse da sociedade? Sim. As empresas podem colaborar em que nível? É isso que vai ser debatido nessa ação, como ontem (quinta, dia 18) debatemos a possibilidade, e aprovamos no plenário, de que quando uma pessoa é sequestrada, por exemplo, as empresas de telefonia, as empresas telemáticas, de internet, devem colaborar para que a pessoa seja localizada. Isso é perda de liberdade? Não! É garantir o direito das pessoas.
Diante disso, qual é a avaliação que o senhor faz dos embates do Musk ao Poder Judiciário brasileiro?
A minha posição é a posição institucional externada pelo presidente do STF, chefe do poder judiciário brasileiro, o ministro (Luís Roberto) Barroso. Nós não estamos, no caso do Supremo, buscando um debate político com esse senhor, ou com qualquer outro empresário do país, ou fora do Brasil. Nossa posição é: ponderação, equilíbrio, moderação, julgar os processos que temos, julgar com independência e sem intimidação. Esse espírito, eu tenho certeza, une o Supremo hoje em que não há busca de bate-boca, de divergência, de combates. Ao mesmo tempo, não há intimidação para que possamos cumprir o nosso papel. Isso vale para todas as pessoas que, eventualmente, estejam com uma perspectiva errada e desrespeitosa à soberania brasileira.
Em palestra, Flávio Dino falou sobre a proteção à família, em que abordou pautas julgadas pelo STF relacionadas ao tema, como a união estável homoafetiva, violência contra a mulher, proteção aos direitos das crianças e licença maternidade para adotantes. Em uma plateia lotada no Centro de Convenções de Vitória, o ministro tirou aplausos muitas vezes do público, formado por profissionais de diversas áreas do Direito, tanto pelas pontuações jurídicas quanto pelas analogias mais leves e em tom de brincadeira.
O presidente da OAB-ES, José Carlos Risk, celebrou o resultado da conferência, realizada em dois dias de muitos debates. "Mais de mil advogados aqui. É um evento que marca a OAB do Espírito Santo e, sem dúvida alguma, debates de excelente nível: nova advocacia, IA (inteligência artificial), do novo Direito, processo eletrônico. Um sucesso grande", conclui.
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