Quatro anos após a realização de um aborto legal, a família de uma menina de 14 anos, moradora do Espírito Santo, se manifestou sobre o caso. Na época, aos 10 anos, a jovem engravidou após ser estuprada pelo tio, e a família precisou lutar na Justiça para a interrupção da gestação.
Por questões de segurança, a família conversou com o “Fantástico”, da TV Globo, em anonimato, afirmando que “criança não pode ser mãe”. O assunto voltou à tona com a tramitação acelerada do Projeto de Lei (PL) 1904/24, que qualifica o aborto como homicídio a partir da 22ª semana de gestação, mesmo em casos de estupro.
A avó da menina, que tem a guarda e a chama de filha, conta que cuida da jovem desde o 27º dia de vida dela. “Para mim, é minha. Ninguém toma, que eu não deixo”, disse a mulher.
Quando o caso sobre a interrupção da gravidez ganhou repercussão, religiosos tentaram invadir a casa da família, dizendo que “estariam pecando”. Além disso, protestos foram realizados para tentar coibir a família e os profissionais de saúde envolvidos no procedimento. Lembrando a invasão em sua casa, a avó contou que a família viveu momentos traumáticos.
“[Ele, um religioso, disse]: ‘vim aqui dar uma palavra para a senhora, não pode fazer o aborto da sua filha’. Eu: ‘por quê?’. ‘Porque a senhora está pecando. Está fazendo algo que Deus não gosta”, lembrou a avó.
Em resposta, a mulher disse que a filha era dela e quem mandava nela era ela. “Então, se ela não quer [seguir com a gestação], eu também não quero”, afirmou.
Em busca da interrupção da gestação, a família procurou pelos serviços de saúde. Entretanto, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam) se recusou a realizar o aborto, apontando “normas técnicas”.
- Se a gravidez for resultante de um estupro;
- Se colocar a vida da mãe em risco;
- Se o feto for anencéfalo, ou seja, que tenha má formação do tubo neural, correndo risco de vida logo após o nascimento.
Segundo a família, ninguém suspeitava do tio que cometia os abusos. Ele, que continua preso, usava de ameaças para silenciar a menina.
“De jeito nenhum [ninguém desconfiava]. Eu nunca imaginava. [Ele] dizia que se ela falasse alguma coisa, ia matar o pai dela. Ia me matar, ia matar o avô dela, os tios e principalmente a tia, que ela gostava muito e que era a mulher dele”, contou a avó.
O caso rapidamente ganhou repercussão nacional e, em meio a todo o trauma, a menina precisou entrar escondida em um hospital para a realização do procedimento. Como a família não conseguiu dar sequência ao pedido no Espírito Santo, precisou interromper a gravidez em uma unidade de saúde em Pernambuco, a aproximadamente 1.600 quilômetros de casa.
“Foi uma descoberta tardia. Por ser uma menina, por ter medo das ameaças que estava sofrendo, ela não conhecia o seu corpo. Então ela foi levada pela família para o hospital da cidade. Naquele hospital, foi confirmada a gestação. Mas dali ela foi retirada da família", disse Anna Luiza Sartorio Bacellar, advogada da família.
Segundo a advogada, antes da retirada do feto, a menina precisou passar alguns dias isolada em um abrigo. Só após a sentença judicial da Justiça do Espírito Santo que ela foi levada para um hospital de referência. Entretanto, com a negativa do hospital capixaba, a família foi até Pernambuco.
Olímpio Barbosa de Moraes Filho, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, em Pernambuco, foi o responsável pelo procedimento com a jovem capixaba em 2020. Para o profissional de saúde, “é um absurdo ela ser punida”.
“Ela já foi estuprada. Ela não quer continuar a gravidez [...] A avó percebeu abaixo de 20 semanas. Mas ela foi obstruída de ter acesso ao serviço em Vitória, que, por norma técnica de lá, a conduta deles têm um limite de 22 semanas, mas não é a lei. A lei não proíbe acima de 22 semanas”, disse Olímpio ao “Fantástico”.
Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução que proíbe os médicos de fazerem assistolia fetal, o procedimento usado para a interrupção da gravidez após 22 semanas nos casos de aborto legal em decorrência de estupro.
Na prática, a norma é contrária a legislação brasileira, que não estabelece limite máximo. Com isso, a resolução foi suspensa em caráter liminar pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
No Brasil, apenas 3% dos mais de 5 mil municípios possuem atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) para o aborto legal;
"A menina estuprada ou a mulher estuprada, ela quer ser atendida o mais rápido possível. É que o Brasil não permite, então está sendo punida várias vezes. E, agora, proibir?", disse Olímpio Barbosa.
Em 2020, a menina, então com 10 anos, foi estuprada pelo tio em São Mateus, na Região Norte do Espírito Santo. De acordo com a Polícia Militar (PMES), após a denúncia, feita em agosto daquele ano, a menina deu entrada no Hospital Estadual Roberto Silvares, acompanhada de um familiar, informando ter sido vítima de estupro e alegando estar grávida.
Segundo a jovem, ela era vítima do crime desde os 6 anos e era constantemente ameaçada pelo tio, que fugiu após a descoberta do caso, sendo preso cerca de duas semanas depois em Minas Gerais, quando foi indiciado por estupro de vulnerável e por ameaça.
Na época, dados da criança estavam circulando na internet. Após intervenção da Justiça do Espírito Santo, o Google Brasil, o Facebook e o Twitter retiraram as informações da jovem do ar, logo após pedido da Defensoria Pública do Estado.
Como mostra reportagem do g1 Espírito Santo, a criança "apertava contra o peito um urso de pelúcia e só de tocar no assunto da gestação entrava em profundo sofrimento, gritava, chorava e negava a todo instante, apenas reafirmando não querer".
Após a Câmara Federal aprovar, na última quarta-feira (12), o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, a proposta vai seguir para votação no plenário sem passar pelas comissões. Se avançar, ainda terá que ser apreciada pelo Senado. Mas, no que depender da bancada capixaba, a maioria defende aumentar a punição para a interrupção da gravidez, inclusive nos casos de estupro.
Chamado de PL do aborto, o projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e mais 32 parlamentares — entre os quais os capixabas Evair de Melo (PP) e Gilvan da Federal (PL) —, altera o Código Penal, que hoje não prevê punição para aborto em caso de estupro, nem estabelece restrição de tempo para o procedimento nessas situações. O código também não pune o aborto quando há risco de morte para a grávida ou se o bebê é anencéfalo.
Com exceção desses casos em que não há punição, o código prevê detenção de um a três anos para a mulher que aborta; reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da grávida; e reclusão de três a 10 anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante.
Caso o projeto seja aprovado, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos em todas as situações, incluindo a gravidez resultante de estupro. A pena é a mesma prevista para o homicídio simples e maior do que a estabelecida para quem pratica estupro, que é reclusão de 6 a 10 anos.
Em Brasília, sede do governo federal, o assunto divide opiniões na Câmara dos Deputados e no Senado. Segundo Arthur Lira, presidente da Câmara, o PL ainda não foi aprovado, e terá uma relatora mulher.
"O tema é polêmico. Se não tiver apoio, ele não será aprovado, ele não será sequer discutido. O relator, que eu já fiz compromisso com a bancada feminina, que nesse projeto será uma parlamentar moderada, que não defenda posições nem pró e nem contra", diz Lira.
Do outro lado, no Senado, o presidente Rodrigo Pacheco afirma que todos os trâmites serão respeitados.
"Um projeto dessa natureza, que é evidentemente de matéria penal e que guarda de fato muita divisão, muita polêmica, é muito importante se ter cautela em relação a ele. Evidentemente, um projeto dessa natureza teria o caminho de se incluir dentro do bojo da discussão de código penal no Senado Federal, ou ao menos a submissão às comissões permanentes da casa para que haja um amadurecimento em relação a ele."
O presidente Lula (PT) também se manifestou e criticou o PL 1904. Durante o encerramento da cúpula do G7, na Itália, Lula afirmou que é contra o aborto e que o assunto deve ser tratado como questão de saúde pública.
“Acho que é insanidade alguém querer punir a mulher em uma pena maior do que a do criminoso que fez o estupro. É no mínimo uma insanidade isso”, disse o presidente.
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