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'Criança não pode ser mãe', diz família de menina do ES que fez aborto legal

'Criança não pode ser mãe', diz família de menina do ES que fez aborto legal

Em entrevista ao "Fantástico", da TV Globo, família capixaba relembrou caso que teve repercussão nacional em 2020, quando uma criança de 10 anos foi estuprada pelo tio e interrompeu a gestação

Publicado em 17 de junho de 2024 às 11:19

Ícone - Tempo de Leitura 7min de leitura
João Barbosa
Repórter / [email protected]

Quatro anos após a realização de um aborto legal, a família de uma menina de 14 anos, moradora do Espírito Santo, se manifestou sobre o caso. Na época, aos 10 anos, a jovem engravidou após ser estuprada pelo tio, e a família precisou lutar na Justiça para a interrupção da gestação.

Por questões de segurança, a família conversou com o “Fantástico”, da TV Globo, em anonimato, afirmando que “criança não pode ser mãe”. O assunto voltou à tona com a tramitação acelerada do Projeto de Lei (PL) 1904/24, que qualifica o aborto como homicídio a partir da 22ª semana de gestação, mesmo em casos de estupro.

O que diz a família?

Família capixaba conversou com o Fantástico sobre caso ocorrido em 2020
Família capixaba conversou com o Fantástico sobre caso ocorrido em 2020. (Reprodução / TV Globo)

A avó da menina, que tem a guarda e a chama de filha, conta que cuida da jovem desde o 27º dia de vida dela. “Para mim, é minha. Ninguém toma, que eu não deixo”, disse a mulher.

Quando o caso sobre a interrupção da gravidez ganhou repercussão, religiosos tentaram invadir a casa da família, dizendo que  “estariam pecando”. Além disso, protestos foram realizados para tentar coibir a família e os profissionais de saúde envolvidos no procedimento. Lembrando a invasão em sua casa, a avó contou que a família viveu momentos traumáticos.

“[Ele, um religioso, disse]: ‘vim aqui dar uma palavra para a senhora, não pode fazer o aborto da sua filha’. Eu: ‘por quê?’. ‘Porque a senhora está pecando. Está fazendo algo que Deus não gosta”, lembrou a avó.

Em resposta, a mulher disse que a filha era dela e quem mandava nela era ela. “Então, se ela não quer [seguir com a gestação], eu também não quero”, afirmou.

Em busca da interrupção da gestação, a família procurou pelos serviços de saúde. Entretanto, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam) se recusou a realizar o aborto, apontando “normas técnicas”.

No Brasil, o aborto é considerado legal em três casos:

- Se a gravidez for resultante de um estupro;

- Se colocar a vida da mãe em risco;

- Se o feto for anencéfalo, ou seja, que tenha má formação do tubo neural, correndo risco de vida logo após o nascimento.

Segundo a família, ninguém suspeitava do tio que cometia os abusos. Ele, que continua preso, usava de ameaças para silenciar a menina.

“De jeito nenhum [ninguém desconfiava]. Eu nunca imaginava. [Ele] dizia que se ela falasse alguma coisa, ia matar o pai dela. Ia me matar, ia matar o avô dela, os tios e principalmente a tia, que ela gostava muito e que era a mulher dele”, contou a avó.

O caso rapidamente ganhou repercussão nacional e, em meio a todo o trauma, a menina precisou entrar escondida em um hospital para a realização do procedimento. Como a família não conseguiu dar sequência ao pedido no Espírito Santo, precisou interromper a gravidez em uma unidade de saúde em Pernambuco, a aproximadamente 1.600 quilômetros de casa.

“Foi uma descoberta tardia. Por ser uma menina, por ter medo das ameaças que estava sofrendo, ela não conhecia o seu corpo. Então ela foi levada pela família para o hospital da cidade. Naquele hospital, foi confirmada a gestação. Mas dali ela foi retirada da família", disse Anna Luiza Sartorio Bacellar, advogada da família.

Segundo a advogada, antes da retirada do feto, a menina precisou passar alguns dias isolada em um abrigo. Só após a sentença judicial da Justiça do Espírito Santo que ela foi levada para um hospital de referência. Entretanto, com a negativa do hospital capixaba, a família foi até Pernambuco.

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Criança não pode ser mãe, como é que a criança vai ter uma criança? Não tem condição

Avó da menina que interrompeu a gestação de forma legal em 2020
Em entrevista ao "Fantástico"
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Olímpio Barbosa de Moraes Filho, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, em Pernambuco, foi o responsável pelo procedimento com a jovem capixaba em 2020. Para o profissional de saúde, “é um absurdo ela ser punida”.

“Ela já foi estuprada. Ela não quer continuar a gravidez [...] A avó percebeu abaixo de 20 semanas. Mas ela foi obstruída de ter acesso ao serviço em Vitória, que, por norma técnica de lá, a conduta deles têm um limite de 22 semanas, mas não é a lei. A lei não proíbe acima de 22 semanas”, disse Olímpio ao “Fantástico”.

Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução que proíbe os médicos de fazerem assistolia fetal, o procedimento usado para a interrupção da gravidez após 22 semanas nos casos de aborto legal em decorrência de estupro.

Na prática, a norma é contrária a legislação brasileira, que não estabelece limite máximo. Com isso, a resolução foi suspensa em caráter liminar pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

  • 3%

    Falta de auxílio

    No Brasil, apenas 3% dos mais de 5 mil municípios possuem atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) para o aborto legal;

"A menina estuprada ou a mulher estuprada, ela quer ser atendida o mais rápido possível. É que o Brasil não permite, então está sendo punida várias vezes. E, agora, proibir?", disse Olímpio Barbosa.

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Me dói até hoje, e vai ficar me doendo para o resto da minha vida. Já faz 4 anos. Eu olho para minha filha e sofro. Olho para minha filha e dói

Avó da menina que interrompeu a gestação de forma legal em 2020
Em entrevista ao "Fantástico"
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O caso no Espírito Santo

Em 2020, a menina, então com 10 anos, foi estuprada pelo tio em São Mateus, na Região Norte do Espírito Santo. De acordo com a Polícia Militar (PMES), após a denúncia, feita em agosto daquele ano, a menina deu entrada no Hospital Estadual Roberto Silvares, acompanhada de um familiar, informando ter sido vítima de estupro e alegando estar grávida.

Segundo a jovem, ela era vítima do crime desde os 6 anos e era constantemente ameaçada pelo tio, que fugiu após a descoberta do caso, sendo preso cerca de duas semanas depois em Minas Gerais, quando foi indiciado por estupro de vulnerável e por ameaça.

Na época, dados da criança estavam circulando na internet. Após intervenção da Justiça do Espírito Santo, o Google Brasil, o Facebook e o Twitter retiraram as informações da jovem do ar, logo após pedido da Defensoria Pública do Estado.

Como mostra reportagem do g1 Espírito Santo, a criança "apertava contra o peito um urso de pelúcia e só de tocar no assunto da gestação entrava em profundo sofrimento, gritava, chorava e negava a todo instante, apenas reafirmando não querer".

Maioria da bancada capixaba é a favor do PL 1904

Após a Câmara Federal aprovar, na última quarta-feira (12), o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, a proposta vai seguir para votação no plenário sem passar pelas comissões. Se avançar, ainda terá que ser apreciada pelo Senado. Mas, no que depender da bancada capixaba, a maioria defende aumentar a punição para a interrupção da gravidez, inclusive nos casos de estupro.

Chamado de PL do aborto, o projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e mais 32 parlamentares — entre os quais os capixabas Evair de Melo (PP) e Gilvan da Federal (PL) —, altera o Código Penal, que hoje não prevê punição para aborto em caso de estupro, nem estabelece restrição de tempo para o procedimento nessas situações. O código também não pune o aborto quando há risco de morte para a grávida ou se o bebê é anencéfalo.

Com exceção desses casos em que não há punição, o código prevê detenção de um a três anos para a mulher que aborta; reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da grávida; e reclusão de três a 10 anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante.

Caso o projeto seja aprovado, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos em todas as situações, incluindo a gravidez resultante de estupro. A pena é a mesma prevista para o homicídio simples e maior do que a estabelecida para quem pratica estupro, que é reclusão de 6 a 10 anos.

O que é discutido em Brasília?

Em Brasília, sede do governo federal, o assunto divide opiniões na Câmara dos Deputados e no Senado. Segundo Arthur Lira, presidente da Câmara, o PL ainda não foi aprovado, e terá uma relatora mulher.

"O tema é polêmico. Se não tiver apoio, ele não será aprovado, ele não será sequer discutido. O relator, que eu já fiz compromisso com a bancada feminina, que nesse projeto será uma parlamentar moderada, que não defenda posições nem pró e nem contra", diz Lira.

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Portanto, sem açodamento, sem nenhum tipo de especulação, ninguém é a favor de estuprador e muito menos contra a vítima do estupro

Arthur Lira
Presidente da Câmara dos Deputados
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Do outro lado, no Senado, o presidente Rodrigo Pacheco afirma que todos os trâmites serão respeitados.

"Um projeto dessa natureza, que é evidentemente de matéria penal e que guarda de fato muita divisão, muita polêmica, é muito importante se ter cautela em relação a ele. Evidentemente, um projeto dessa natureza teria o caminho de se incluir dentro do bojo da discussão de código penal no Senado Federal, ou ao menos a submissão às comissões permanentes da casa para que haja um amadurecimento em relação a ele."

O presidente Lula (PT) também se manifestou e criticou o PL 1904. Durante o encerramento da cúpula do G7, na Itália, Lula afirmou que é contra o aborto e que o assunto deve ser tratado como questão de saúde pública.

“Acho que é insanidade alguém querer punir a mulher em uma pena maior do que a do criminoso que fez o estupro. É no mínimo uma insanidade isso”, disse o presidente.

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