Uma lei elaborada e aprovada por deputados estaduais, com a sanção do governador do Estado, permitiu a criação de um cadastro de pessoas condenadas por estupro e por violência contra a mulher no Espírito Santo. Desde o início, a justificativa da criação da lei era tornar público o nome e a foto de cada um dos condenados no Estado. Ou seja, as informações estariam disponíveis para qualquer um checar. No entanto, o próprio texto cita a Lei Geral de Proteção de Dados, conhecida como LGPD, que entrou em vigor no Brasil em setembro de 2020. A lei é responsável por estabelecer regras para o uso de informações pessoais. Mas a existência da LGPD pode impedir a divulgação pública dos condenados no Espírito Santo?
O texto traz algumas regras: pessoas investigadas pelos crimes ou que ainda estejam recorrendo de uma condenação não podem ser expostas. Assim como as vítimas, que devem ser preservadas. Ou seja, só entra no cadastro, em uma espécie de lista, quem for condenado pelo crime. O cadastro deve entrar em vigor 90 dias após a publicação da lei.
O projeto de lei foi proposto pelo deputado Marcelo Santos, presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo. A proposta foi apresentada em maio deste ano, apontando que há "interesse público" no cadastro de condenados por estupro e violência contra a mulher. No texto de justificativa, onde o político expõe a relevância do assunto, há uma citação ao Supremo Tribunal Federal (STF), informando que a instância do poder permite iniciativas como esta nos Estados.
O projeto de lei original traz três artigos, nenhum deles citando a Lei Geral de Proteção de Dados. Conforme descrito no site da Assembleia Legislativa, através de documentos, a LGPD foi acrescentada ao texto em agosto. Veja abaixo a comparação entre o texto inicial e o texto final da lei.
O texto aprovado na assembleia, então, tinha uma citação à LGPD. O governador Renato Casagrande recebeu o texto e sancionou a lei, aprovando quase tudo que havia sido discutido entre os deputados. Houve apenas um veto, que diz respeito à secretaria responsável pela atualização das informações. Conforme explicado pelo próprio governador, a responsabilidade é da Secretaria de Estado da Justiça.
Horas após a aprovação da lei, o deputado Marcelo Santos, autor do projeto de lei, publicou um vídeo comemorando a decisão do governador Renato Casagrande. Na legenda da publicação, o deputado escreveu que o cadastro vai reunir "informações detalhadas, como nome e foto, de todos os condenados por esses crimes no Estado".
"Esse cadastro vai fazer com que o cidadão tenha seu nome explicitado no site oficial da Secretaria de Justiça para que nós possamos conhecer o criminoso", afirmou Marcelo Santos.
Isso significa que, de acordo com a proposta apresentada, os capixabas terão acesso ao nome e à foto de cada um dos condenados por estupro e violência contra a mulher. As informações, que atualmente são de acesso restrito, ficarão à disposição da população, conforme explicado pelo deputado.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) regulamenta o tratamento de dados pessoais no Brasil. A ideia é garantir privacidade e segurança. A lei estabelece regras sobre coleta, uso, armazenamento e compartilhamento de informações, dando às pessoas mais controle sobre os dados. A aplicação da LGPD é fiscalizada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), com penalidades para quem não cumprir as normas.
Considerando a função da LGPD e a proposta da lei, a reportagem de A Gazeta procurou especialistas para saber se há um conflito de informações e se os dados pessoais de condenados poderão ser expostos.
Em conversa com a reportagem de A Gazeta, a advogada e professora especialista em LGPD Fernanda Modolo explicou que a função da lei é justamente proteger os dados pessoais dos brasileiros. Ocorre que há um artigo na própria Lei Geral de Proteção de Dados que trata dos casos de exceção. O artigo cita casos relacionados à segurança pública.
O artigo 4º, citado pela especialista, explica que a lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizados para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado e atividades de investigação e repressão de infrações penais.
O texto da LGPD ainda cita: "Em nenhum caso a totalidade dos dados pessoais [...] poderá ser tratada por pessoa de direito privado, salvo por aquela que possua capital integralmente constituído pelo poder público". O trecho indica que empresas privadas não podem coletar, armazenar e processor dados pessoais. É uma função restrita a organizações públicas ou empresas criadas exclusivamente pelo poder público.
O advogado especialista em direito digital Bruno Guerra compartilha o entendimento de que o artigo 4º torna possível a criação de um cadastro de pessoas condenadas pelos crimes, conforme proposto pelo deputado. O especialista ressalta, no entanto, que o fato de os assuntos ligados à segurança pública se enquadrarem em casos de exceção não significa que o Estado deva descartar totalmente as regras da LGPD para a administração das informações dos condenados. O advogado afirma que o termo "outras informações dos condenados", previsto na lei, deve ser observado.
Ainda segundo Bruno Guerra, a lei aprovada no Espírito Santo está de acordo com um julgamento do Supremo Tribunal Federal. A instância do Poder Judiciário definiu que Estados podem criar bancos de dados como o proposto no Espírito Santo. Por fim, o advogado explica que o governo do Estado deve criar ferramentas para que o cadastro dos condenados não gere perseguição às pessoas listadas.
A Gazeta conversou com duas especialistas em direitos humanos a respeito da lei. O texto aprovado cita que as vítimas não devem ser expostas, o que foi ressaltado pelas fontes consultadas pela reportagem. Ainda segundo a lei, aqueles indivíduos que ainda estão recorrendo não devem integrar o cadastro de condenados. As duas especialistas concordam a respeito da gravidade dos crimes cometidos, que em sua maioria vitimam mulheres e crianças, mas divergem a respeito da exposição de fotos e nomes dos condenados.
No entendimento da advogada e mestre em Direitos e Garantias Fundamentas Verônica Bezerra, a aprovação da lei distancia o Espírito Santo de um cenário de civilidade, o aproximando do que chamou de "barbárie". Para a advogada, a exposição não muda significativamente o enfrentamento da violência contra a mulher no Estado e torna os condenados vulneráveis a um justiçamento - ambiente em que alguém ou um grupo decide punir uma pessoa já considerada culpada.
De acordo com Verônica Bezerra, a ideia de criar uma lista de pessoas condenadas não é novidade e existe há pelo menos nove anos em outros lugares do Brasil. A especialista ressalta que as penas devem ser cumpridas, considerando os crimes cometidos. Isso não deve significar, segundo ela, uma pena perpétua. "Medidas desta natureza afastam uma sociedade da civilidade e aproximam da barbárie", comenta.
Na avaliação da presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e professora da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) Elda Bussinguer, a lei é um instrumento importante para a defesa daqueles que foram vítimas, como as mulheres e as crianças. A especialista defende ser "inevitável" a criação de um cadastro, considerando a "grandeza do problema" entre os casos de estupro e violência contra mulher.
A professora da FDV lembra que o governo federal criou, em 2020, o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro. Na época, o governo federal informou que o cadastro incluiria informações sobre características físicas, a identificação datiloscópica, o perfil genético e fotos das pessoas condenadas por esse crime.
Apesar de terem posicionamentos diferentes, Verônica Bezerra e Elda Bussinguer defendem que o governo do Estado tenha meios e ferramentas para evitar que a lei aprovada abra espaço para justiçamento.
"Pode haver a colisão de direitos fundamentais. Um ambiente de justiçamento fere a Constituição, que não prevê condenação perpétua ou condenação por morte. A pessoa perde a chance de ressignificar sua vida", afirma Verônica Bezerra.
"Corremos o risco de ter um ambiente de justiçamento. Mas precisamos avaliar que princípio deve prevalecer numa determinada situação. Neste caso, cabe ao Estado e ao legislador, mas também à sociedade, fiscalizar para que a lei não possa ser usada em benefício de alguns", pontua Elda Bussinguer.
A reportagem de A Gazeta procurou a Secretaria de Estado de Direitos Humanos para responder a respeito da aprovação da lei. Foi solicitada uma fonte para entrevista sobre o assunto, mas não houve retorno.
Em conversa com a reportagem de A Gazeta na data de publicação da lei, o secretário de Estado da Justiça, Rafael Pacheco, afirmou que já havia uma espécie de seleção e organização de condenados nos sistemas internos da pasta. O secretário afirmou naquele momento que, considerando a LGPD, não poderia haver divulgação de foto ou nome de pessoas condenadas.
A Gazeta voltou a procurar a Secretaria de Estado de Justiça, considerando as avaliações feitas pelas fontes ouvidas pela reportagem. Na quarta-feira (18), a Secretaria da Justiça (Sejus) enviou uma nota informando que um grupo de trabalho, composto por diversas áreas do Governo do Estado, foi criado para atuar na regulamentação da Lei 12.206. "O prazo legal para a construção da regulamentação é de 90 dias, contados da publicação da lei sancionada no dia 10 de setembro", informou em nota.
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